Anjos e demônios

Número 411
Rubem Penz


Eis um clássico dos desenhos animados e dos quadrinhos: quando o protagonista se defronta com um dilema, surge sobre seus ombros um anjo de um lado e um demônio do outro. Ambos concorrem em conselhos buscando influenciar a consciência – território do livre arbítrio. Em jogo, o pendor das ações. Se o ser humano fosse virtuoso por natureza, o demônio colocaria o tridente no saco e abandonaria o emprego. O problema é que não somos assim tão bonzinhos, e os argumentos do capeta são muito convincentes.


O grande talento do demoniozinho fictício é o de soprar em nossa orelha uma oferta irrecusável, aquela que sempre acena com a vantagem pessoal. O anjo, por sua vez, rechaça qualquer privilégio. Por exemplo, quando há uma fila enorme de automóveis em um engarrafamento, surge o dilema e começa o debate:


Capeta: Ô babaca, pega o acostamento e passa por todos!


Anjo: Nada disso! As pessoas na sua frente chegaram antes e merecem a primazia. Além do mais, segundo a lei, o acostamento não é pista de rodagem.


Capeta: A culpa do engarrafamento não é sua. Sai agora ou chegará atrasado!


Anjo: Se fosse previdente, teria saído mais cedo…


Capeta: Ó, acabou de passar um pela sua direita! Vai agora, antes que o acostamento engarrafe também!


Anjo: Não! Essa vantagem é ilícita!


É quando, no exemplo, a virtude arrisca ir para o brejo… Como a honestidade é a marca do anjo, ele reconhece que há vantagens para quem coloca seus interesses acima dos demais. Principalmente quando a regalia segue de mãos dadas com a impunidade: lei sem fiscalização só castiga os obedientes.


O anjo, representando o bem, pensa no outro. O demônio, em nome do mal, é egoísta. Em tese, se ninguém prejudicasse ninguém, todos seriam beneficiados. Na prática, a ordem é cada um por si e o sistema falho que nos livre!


Isso vale para os automóveis e para tudo: pedófilo e estuprador pensam no prazer, azar da vítima; o assaltante deseja os bens alheios, mesmo que incida em prejuízo para quem caiu em sua teia, ou mesmo lhe custe vida; o traficante conhece o preço social da fissura, e lucra com isso; o corrupto e o corruptor dão uma banana para a coletividade, e assim por diante. O demônio que habita o ombro quer nosso benefício exclusivo, imediato e ilimitado. Oferta muito tentadora.


Voltando ao trânsito, como todos já devem saber, um motorista atropelou de propósito dezenas de ciclistas em Porto Alegre. O ato, flagrado por câmeras de celular, repercutiu no mundo inteiro. Poucas vezes tive a oportunidade de testemunhar tamanha fúria e inconsequência. O anjo que deveria estar no ombro do cidadão só pode ter saído para dar uma volta, pois um mínimo de pensamento lógico, lúcido ou amistoso seria suficiente para evitar o que quase virou tragédia.


Sem querer justificar o injustificável, falharam também os anjos dos ciclistas que bateram com suas mãos na carroceria do automóvel antes de ele acelerar sobre a massa, atiçando as brasas até o ponto de labareda. Deve (ao menos deveria) estar pesando na consciência daquelas pessoas os ferimentos dos companheiros. Afinal, um conselho típico de anjo é o de não agredir ninguém, especialmente um desconhecido que parece apressado e furioso, pois a reação nem sempre é proporcional.


Anjo: Isso! Use esse artigo para dizer que venho perdendo terreno para o egoísmo; que as pessoas devem me escutar mais e cultivar a paz e a tolerância.


Capeta: Que nada, deixa pra lá, não te envolve… Nem foi contigo! Qual será a vantagem?


4 comentários em “Anjos e demônios”

  1. As imagens foram mostradas na BBC News aqui na Inglaterra varias vezes nesse dia. Tambem foi um dos clipes mais assistidos no site deles no dia. Impressionante como a desgraca alheia atrai a atencao das pessoas… mas desde que a desgraca esteja longe (Libya, Egito, Porto Alegre, etc).

  2. Alessandra Silveira

    Trabalhei com uma turma de 38 alunos o tema: Motorista atropela ciclistas. Concordo? Discordo? Por quê? Eles deveriam opinar, depois buscar informações e argumentar sua resposta. Para minha surpresa 2 alunos concordaram com o motorista. Assim, meu êxito foi que todos fizeram o trabalho e particparam do debate em sala de aula. Minha frustração, não consegui demover os alunos de suas opiniões.Eles argumentaram a proteção de um pai com seu filho entre outras defesas e eu apenas encerrei o trabalho dizendo: medo? proteção? Então recuasse, desligasse o carro.Um anjo não seria suficiente, necessitaria um exército de anjos para tamanha maldade transformar-se em bondade.

  3. Paulo Henrique,
    O único atenuante que vejo no caso é o que, diferente dos ataques armados típicos em escolas dos EUA, não houve premeditação. Isto é, não saiu de casa pensando: hoje vou matar esses ciclistas FDPs.O camarada tresloucou…
    Abraços, Mano

  4. Alessandra,
    Super bacana a experiência em sala de aula! Parabéns! Já estive dentro de um carro acuado por uma multidão inamistosa (coisas da tradição grenal). Dá medo, mesmo. Mas, daí até avançar sobre pessoas com um carro vai uma distância e tanto! Abraços, Rubem

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