Número 328

ESPRESSO

Rubem Penz

Entrei no bistrô para ali investir o precioso lapso de tempo que a manhã me proporcionava. Mal sentei à janela, o garçom se aproximou no ritmo ideal: nem tão rápido que sugerisse a ansiedade latente de um estabelecimento vazio, nem tão lento como a indicar um bom motivo para o grande número de mesas desocupadas. Solícito, me alcançou o cardápio, recolhendo-o diante do meu gesto de dispensa. Eu já sabia o que pedir.

Preciso de uma crônica, por favor.

O garçom inclinou a cabeça, apertou suavemente os lábios e arqueou a sobrancelha. Demorou alguns segundos processando o pedido: quem sabe algo em mim não indicasse tal preferência? Buscando mais informações, perguntou se eu desejava um acompanhamento.

Não, obrigado. Por hora, nada mais.

Ele assentiu, deu um passo curto para trás, girou e partiu na direção do grande balcão de madeira. Virei-me para a janela e deixei que a música ambiente se fizesse notar: Billie’s Bounce, do Charlie Parker. Na falta de alguém para conversar, aí estava o jazz para ser a boa companhia durante a espera…

Do lado de fora, a cidade não parecia sentir nem um pouquinho a minha falta. Os automóveis seguiam em sua habitual urgência, quase não acreditando ser necessário parar para atender a ordem do semáforo de pedestres. Quem estava a pé dividia-se entre taciturnos e distraídos. Todos, porém, dentro e fora dos carros, pareciam colocar o pensamento logo adiante – para o que lhes esperava –, esquecendo de viver o presente. Ninguém olhava para ninguém.

Uma moça de casaco claro, meio tom acima do cachecol, falava sozinha. Procurei por aquele ridículo fio em sua orelha que indicasse o uso do estranho vivavoz do telefone celular. Nada. Melhor assim… A impressão do lado de cá da vitrine era de que ela fazia um ensaio. Isso: ela repassava o texto, com direito a suas diversas nuances. Quando recebeu o sinal verde, partindo para meu lado da rua, uma das mãos mantinha a bolsa firme contra o corpo, e a outra, fechada, apertava-se com energia. Fosse o que fosse o motivo da palestra íntima, parecia sério.

Neste instante, um motoqueiro de entregas ameaçou disparar sobre ela, avançando na faixa de segurança. A mão que estava crispada se espalmou como quem grita pare, ao mesmo tempo em que o corpo saltava para o lado. A mim, que assistia, coube apenas puxar o ar em sobressalto. Os dois trocaram olhares e, cada um com suas razões, xingamentos. Ambos terminaram suas tarefas: ela atravessou a rua, ele prosseguiu com sua roleta russa.

O garçom chegou com a xícara fumegante, atraindo a minha atenção. Dentro dela, o líquido escuro e aromático estava coberto por uma diáfana espuma. Indicou onde estavam o açúcar e o adoçante, se quisesse, e ofereceu um biscoito de canela para acompanhar. Mesa posta, incluindo a comanda de pagamento, retirou-se assim que agradeci.

Quando voltei os olhos para a vitrine outra vez, procurei, mas não vi a moça do cachecol. Todos os demais prosseguiam com sua ensimesmada pressa metropolitana – como se aquela esquina existisse apenas para ser abandonada o quanto antes. Respirei fundo. Ou melhor, suspirei. Agora, ao som de Round Midnight, de Thelonius Monk. Porém, enquanto balançava a cabeça como quem diz que tudo está errado – minha vez de falar sozinho –, reparei que a tal moça entrara no bistrô.

Esperança: mais alguém na sexta-feira de manhã teria disposição para fazer a breve pausa de ler uma crônica. Ou até de servir de inspiração.

4 comentários em “Número 328”

  1. Quando tua cara metade descobrir que cachecois que nao os dela andam te servindo te inspiracao a musica sera…

    … “There may be trouble ahead, but while there’s music and moonlight and love and romance, let’s face the music and dance”

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