Número 330

OS MORCEGOS DO ANDAR DE CIMA

Temos em casa um telhado proeminente, planejado para ocupar os altos da residência com a biblioteca. Como moramos no Rio Grande do Sul, terra que acomoda temperaturas desde siberianas até caribenhas durante as mudanças de estação, deixamos um generoso espaço entre as telhas e o forro, com estratégicas entradas de ar. Isso atenua um pouco o elevado pé direito da sala (bom para o inverno) e promove uma refrigeração para tornar suportáveis os dias de sol escaldante. Porém, tal generosidade foi muito bem recebida pelos morcegos, animais capazes de penetrar por risíveis frestas entre as telhas. Em pouco tempo, habitavam as dezenas (centenas?) sobre nossos livros.

Enquanto somavam uns poucos, os morcegos eram até suportáveis – eles lá, nós aqui. O problema começou a se tornar grave com a proliferação: ruídos, odor, revoadas ao anoitecer, invasões. Como tenho a audição diminuída nas frequências agudas, considerava exageradas as queixas sobre seus grunhidos. Até o momento em que se somaram, multiplicaram e tornaram-se evidentes até para mim. O cheiro dos excrementos, também, começou a ultrapassar a barreira do tolerável. Sem falar no fato de vermos nossa sacada se transformar em intenso aeroporto ao por do sol, com partidas de aeronaves a cada dez segundos. Por duas vezes, também, tivemos morcegos dentro de casa. E não é tão fácil tirá-los, com a uma aranha, sapo ou lagartixa (para ficar nos tradicionais ingredientes das poções de bruxas). Providências já, pedia a esposa.

Fui para a internet e descobri aparelhos que, ligados às tomadas, emitiam ruídos inaudíveis aos humanos e desagradáveis para morcegos. Compramos logo dois, na esperança de sumirem os bichos. Pura ilusão… Ou fomos iludidos pelo fabricante, ou nossos morcegos se habituaram ao desconforto sonoro. Então, chamei um empreiteiro: seria possível lacrar o telhado? Talvez sim, mas sairia muito caro e com tênue a garantia de sucesso – os morcegos são especialistas em procurar novas fendas. Por fim, falei com um biólogo: posso colocar veneno no telhado? Não: os morcegos são importantíssimos na cadeia alimentar e, assim, estão protegidos pela legislação ambiental.

Quando tudo parecia perdido, uma oportuna reportagem de jornal jogou uma luz sobre o tema. Morcegos precisam se abrigar em ambientes sombrios durante o dia, para dormir. Indicava, então, intercalar algumas telhas transparentes com o objetivo de tornar iluminado o espaço acima do forro. Como em um passe de mágica, sem grandes investimentos, os morcegos nos deixaram em paz. A lógica, de tão simples, me fez estupefato: como não pensei nisso antes?

Livre dos morcegos reais, leio sobre a política nacional, sobre nossos poderes, nossas estatais. O Brasil é um enorme telhado crivado de fendas, algumas até protegidas por lei. Somos um criadouro de morcegos, alimentando-se de nosso sangue à noite e protegidos na escuridão durante o dia. Finda a ditadura, a imprensa passou a emitir sons que, ao menos na teoria, deveriam espantar os morcegos. Mas eles não dão bola. Muitos cidadãos perguntam se não é possível reconstruir o Brasil sem frestas, blindado contra tais morcegos. Impossível, é a resposta. Em nenhum lugar no mundo existe telhado assim. Os radicais adorariam envenenar-lhes a pizza, e só não o fazem por ser ilegal.

Agora que a quantidade, os excrementos, os danos provocados pelos morcegos já alcançam o nível do insuportável; sabedores que somos da natureza dessa espécie – que precisa necessariamente habitar a escuridão –; livres para pensar e fazer nossas escolhas, fica a pergunta: o que falta para se fazer o óbvio? Contra todos os morcegos, para que eles não existam ao nosso redor, como bem apregoa Cláudio Weber Abramo, basta transparência e luz.

2 comentários em “Número 330”

  1. Quase que justifica jogar pedras nos telhados dos politicos, porque botar telhas transparentes na casa eles mesmos isso nunca vai acontecer (seria como se na tua casa os morcegos tivessem installados as tais telhas, neh). 1) Eles dirao: Nao existe verba.
    2) Parafraseando meu sogro, o empreeiteiro que tentar sera encontrado no dia seguinte com a boca cheia de formigas, mas a imprensa chegara antes da policia(principalmente se for nos estados mais ao norte como o… Amazonas ou Maranhao?).
    O unico parlamento que eu conheco (devem existir outros por ai) com teclado de vidro fica em Berlin e se algum dia forem la podem ate mesmo caminhar em torno do dele. Isso nao significa que eh um Pais perfeito, mas para quem conhece o Pais parece fazer uma diferenca imensa em relacao a terra Brasilis.
    Gostei muito da comparacao mano.
    Abracos.

  2. Paulinho, tens toda a razão: os morcegos serão os últimos a colocar telhas de vidro sobre suas cabeças. Uma, porque precisarão se mudar. Outra porque ia faltar pedra, tantas voando para lá e para cá! (bem que Brasília podia se tornar um pouquinho Berlim…)
    Valeu! Abração, Mano

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