Número 390

ESTERILIDADE

Rubem Penz

Os pais foram tudo para Regina. Diz que viveu anos de verdadeira realeza durante a infância: quando pedia, ganhava. Quando desejava, acontecia. Quando implicava, era aquilo nunca mais. Para todas as escolhas ela tinha preferência. Dormia até quando julgasse suficiente, deitava quando queria – jamais teve o sono violado. À mesa, só lhe era servido o que trazia prazer. Escolhia o roteiro das férias, o programa do final de semana, o canal de TV, a música e tudo mais. Ela é convicta: seus pais foram tudo para ela.

Mas, uma dúvida me intriga: quem teriam sido os seus pais?

Isso porque toda hora nossos amigos relatam maravilhas familiares. Um, disse que os pais ouviam música clássica durante as manhãs de domingo. Era o único dia da semana em que não havia hora para levantar, desde que os filhos não abusassem – medida complicada, mas que era de alguma forma compreendida por todos. Então, ele despertava ao som de Beethoven, Liszt, Strauss, Vivaldi… Esse amigo confidenciou que sente muita saudade daquelas manhãs de domingo, e que a mata quando, vez por outra, repete o ritual de sua infância. Também gosta de contar aos filhos outras histórias peculiares sobre seus avós. Regina nunca soube dizer a preferência musical dos seus pais. Lembraria de alguma rotina especial de domingo?

Outro camarada, que adora viajar, falou que foi dar asas ao desejo apenas na adolescência. Seus pais tinham muitos bichos: canário belga, pintassilgo, periquito, coelho, galinhas, tartaruga e dois cães. E não eram ricos a ponto de contratar alguém para cuidar dos animais. Logo, passavam as férias em casa. A partir de um momento, ele passou a aproveitar a folga dos estudos para ajudar na limpeza das gaiolas, colher ovos, sair com os cães para passear. Com isso, ganhou uns trocados da mãe e fez sua primeira viagem ao litoral, para um camping. Garantiu-nos que foi o máximo! No ano seguinte, deu aulas particulares, ajudou com os bichos, lavou carros e ficou quase um mês longe de casa. Regina lembra que ganhou hamster, cachorro e gato quando pediu. Mas não recorda de quem cuidou deles quando enjoou. Teriam sido seus pais?

Às vezes, os amigos acham que Regina não parece ser de nossa época. Todos citamos de cabeça alguns radialistas, apresentadores de TV e comentaristas – nenhum ela conhece. Nossos pais, sempre que estavam no carro, escutavam programas de notícias. Também escolhiam o canal de TV durante o jantar. Cantamos de cor umas cortinas musicais engraçadas, imitando vozes e bordões a ponto de ficarmos até melancólicos com essas lembranças. Falamos de jornalistas mortos como quem comenta sobre um tio ou um padrinho. Será que os pais dela nem ligavam para as notícias?

Pois é… Regina viveu anos de verdadeira realeza durante a infância. Só não tem muita certeza se é apta a ter filhos. A ideia de atender-lhes todos os desejos, dar-lhes tudo o que pedem e estar sempre ao dispor lhe apavora. Prefere apenas continuar cuidando das suas coisas, fazendo o que gosta, indo para onde quer a qualquer tempo. Deve isso aos valores de berço. Assim como seus pais foram outrora, Regina é tudo para ela.

Pensando bem, quem seriam seus filhos?

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