Para sairmos do buraco

Rubem Penz

Iniciativas facilmente rotuláveis de antiquadas guardam alguma lógica. Por exemplo, a relutância em usar programas de mapas para nos guiar no trânsito. Sempre que posso, dispenso o GPS justamente para manter mais ou menos em dia a capacidade de me localizar no mundo. Às vezes, porém, a coisa sai do controle. Como na noite de quarta-feira passada, numa cidade próxima, quando perdi a esquina certa por detalhe. Para retornar, andamos muito e, sem querer, nos metemos naquilo que, por preconceito, pareceu ser uma “bocada”: vila popular sem infraestrutura urbana. Como estava no banco de trás, sugeri à motorista que manobrasse para voltarmos (no carro, duas mulheres e eu). Ao dar marcha a ré, caímos num buraco. E, pelo aclive, o automóvel não conseguia sair por si.

Éramos ali três representantes da malfadada elite branca diante do Brasil cru, profundo, verdadeiro. E agora? Pois não demorou trinta segundos para surgirem pessoas. Primeiro, crianças. Depois, homens e mulheres. Eu, já fora do carro e avaliando a situação (nada grave, apenas complicada), fui acalmado por um senhor bastante humilde: nosso percalço era recorrente. A toda hora isso acontecia sem que arrumassem a via. Dois ou três homens (e eu) empurrando foi o bastante para sairmos da arapuca. De lambuja, nos indicaram o caminho para chegar ao destino. Um pouco surpresos e muito agradecidos, partimos.

Estranho, né? Não indagaram sobre cores partidárias, orientação sexual ou religião. Ninguém cuspiu, ofendeu, acusou, extorquiu, ameaçou. Em instantes, uma rede de solidariedade deu a exata lição de cidadania, bondade e bom humor. Sim – todos pareciam muito leves e, talvez, rissem do nosso temor. Saíram do lar quentinho para ofertar uma dose de esperança. O oposto do que bem-nascidos estão a fazer nas redes sociais, nos aeroportos e restaurantes. Nos palácios. Inundado de vergonha alheia, reconheci nossa salvação: ela está onde sempre esteve. Está diante dos nossos olhos.

Esse país, na boa intenção de se localizar no mundo, perdeu a esquina e caiu no buraco? A encruzilhada parece sombria e ameaçadora? É claro. Mesmo assim, hoje estou acrescido de fé. Os humildes têm muitas das respostas. Aos líderes cabe um pouco de serenidade, solidariedade e leveza para voltar ao caminho do bom destino. Foco na solução. Decência. Bondade. Honestidade. Transparência. Humildade. Respeito. Lucidez. Primeiro: sair do buraco. Depois, consertar o buraco. Acima de tudo, honrar o povo brasileiro. Eles merecem mais, muito mais do que recebem por seus sacrifícios. Façamos isso já, no mínimo, por gratidão.

Crônica publicada no Metro Jornal em 03.05.2016

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