Revisor de plantão

Número 464

Rubem Penz

Há uma regra não escrita, mas que parece ter validade mundial ontem, hoje e sempre: quando o leitor esbarra em um erro ortográfico ou de gramática, o livro inteiro desce um degrau no conceito. Milhares de palavras íntegras e orações perfeitas são maculadas por um deslize. Ou, o que é pior: as ideias expostas, a história contada, as teses defendidas sofrem um abalo sísmico. Quando a compreensão é atingida pelo erro, vá lá, estamos diante de muitos graus na Escala Richter. Porém, na maioria acachapante dos casos, a falha passa despercebida por muita gente, e em nada afeta o conteúdo. O que minimiza o fato, mas não destrói a questão de que haverá desmerecimento.

Por isso sempre fui e sempre serei um fã incondicional dos revisores. Eles estão ali para garantir a saúde do texto oferecendo uma segunda opinião. Os brilhantes, e não são muitos, leem palavras, frases e parágrafos permanecendo vigilantes ao sentido. Manuseiam as vírgulas com a delicadeza de um ourives; notam os acentos como um maestro a escutar cada detalhe da orquestra; caçam falhas de digitação como a tricotadeira que não perde um só ponto. São atentos como o analista, seguros de que o discurso poderá trair o desejo do escritor (para o bem ou para o mal). Então, apontando a falha no ato, darão ao autor a rara oportunidade de pensar melhor antes de o livro ser impresso.

Sei que não é fácil receber o original de volta da revisão. É triste ver que poucas páginas escapam virgens – o que exige muita humildade no momento de aceitar e recusar as modificações sugeridas. A primeira reação é um enorme “não é possível, eu redijo bem, o revisor quer escrever por mim”. Depois, aos poucos, domamos a fera e baixamos a crista, reconhecendo que a vaidade sempre foi péssima conselheira. Quando redator publicitário, eu implorava por revisão considerando o próprio autor o menos qualificado para o trabalho. Numa agência consegui que a coordenadora de produção lesse os textos, e muita dor de cabeça foi evitada. Desconfie dos que odeiam revisores: se achar infalível é a primeira de muitas outras falhas. E a maior delas.

Pena que na vida não tenhamos essa figura tão útil a marcar em vermelho nossas palavras e atitudes. Para muitos, revisor de plantão seria luxo. Para outros, porém, necessidade. O problema é que o revisor acabaria mal visto ou mal interpretado justamente por quem mais precisa.

 

         – Olha lá que linda! Vou chegar nela e dizer “Que tal darmos as mãos para mim dançar contigo”?

         – O certo seria “eu dançar contigo”.

         – Eu dançar com você? Jamais!

         – Você não entendeu: é “eu” com ela.

         – Nada disso! Vi primeiro. Além do mais, sou o autor da cantada. Você, no máximo, revisa.

         – Tá bom, tá bom. Vou sugerir outra forma, já que você não alcançou: que tal “dançarmos juntos”.

         – Ih, olha aí o cara! Só pode estar de brincadeira. Homenagem atroz, só comigo e duas mulheres, compreendeu?

         – Ménage à trois. É francês.

         – Só podia ser mesmo: coisa de fresco. Levo outro homem para cama e, quando vejo, a vaca torce o rabo.

         – É a porca quem torce o rabo. A vaca vai para o brejo.

         – Bem isso. Olha lá: outro cara pegou a menina na frente de eu.

         – Na minha frente.

         – Que seja, então, na frente de nós dois. Ei, espera, aonde você vai?

         – “Mim” precisa de um uísque…


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13 comentários em “Revisor de plantão”

  1. Claudinho Pereira

    Bela e oportuna cronica!!!! Estou escrevendo um livro e sofrendo na revisão, quando mando um texto achando digno de um Cortez, volta do revisor e me sinto um merda. Valeu amigão

    Abraços,
    Claudinho Pereira

  2. Claudinho, bem comentado. Essa é a segunda impressão: a primeira, raiva (sou um Cortez!). A segunda, depressão. E a virtude está no centro. Grande abraço e muito grato! Rubem

  3. Sempre fui terrivel em Portugues. Alias, nao interessa a lingua, sempre fui terrivel em gramatica, mas percebo atraves dos meios de comunicacao sociais (digitais) de hoje que entre os mais jovens o grau de albabetizacao esta muito ruim e nao me refiro apenas a gramatica. Nao me acho um radical. Nao gosto de revisores nazistas. A funcao da lingua eh transmitir o pensamento de maneira eficaz. Ela eh uma ferramenta ao nosso servico e nao um objeto de adoracao religiosa. O problemas com os mais jovens, no entanto, eh que eles agora tem uma mente pobre e preguicosa (desculpa, nao tem cedilhas) para transmitir com eficiencia seus pensamentos… alguns vao alem e sao pobres e podres tambem. A maioria simplesmente nao sabe a diferenca entre um ponto e uma virgula, isso quando lembram que eles existem. Fica tudo mais dificil de entender e muito vago. Coincidentemente, esta semana o ministro da educacao Britanico fez comentarios preocupantes sobre os baixos indices de alfabetizacao no Reino Unido. Como sempre estamos conseguindo globalizar os problemas e baixar o nivel em todo lugar. Que civilizacao patetica essa nossa. Apesar de toda tecnologia e meios de comunicacao a nossa disposicao estamos piorando a nossa capacidade coletiva de nos fazermos entender.

  4. Paulo Henrique, sou mais brando: a comunicação não está “piorando”, simplesmente. Digamos que esteja em transformação constante. Acertas na mosca, porém, quando falas que muita gente na nova geração não se faz entender. Aí temos um problema grave. Clareza e precisão são mais do que virtudes: são uma necessidade! Abração, Rubem (Mano)

  5. Criativo, leve, gostoso mesmo seu texto, Rubem! Gamada que sou na “última flor do Lascio”, adorei mesmo! Parabéns! Abração!
    Nathalia Setúbal

  6. Marcos Dillenburg

    Cortez, será que os revisores não têm uma necessidade incontrolável de achar pelo em ovo e dar seu próprio toque ao texto? Ou um sentimento maquiavélico de superioridade? Logo de início na leitura de teu texto sai à procura de erros decorrentes da recente reforma ortográfica, e constatei que estás já adaptado, o que não ocorre comigo. Sigo tendo IDÉIAS e não IDEIAS, mas já me conformei com a perda das saudosas tremas, graças à máxima: “nunca trema em cima de linguiça”. Sou leitor habitual e levemente chato com erros ortográficos, mas um texto perspicaz e sensível, mesmo que com pequenos (imperceptíveis no teu caso) deslizes, é infinitamente melhor que banalidades bem escritas.
    Grande abraço, Marcos Dillenburg.

  7. Me sinto aliviado do constrangimento que senti depois de ter corrigido o prof. Rubem no Curso de Criação Literária da Uniritter no ano passado. Dando uma palestra sobre Crônica cometeu um erro crasso em escrita no quadro, me levando a crer hoje que tivesse sido uma provocação, uma espécie de teste pra sondar quem seria o CDF que teria a coragem de corrigi-lo… (risos) …

  8. Dillen,
    Sempre fui distraído na hora de escrever, e muito mais fonético do que correto. Por isso amo a revisão! E acho que bons revisores são, antes de tudo, bons leitores.
    Armando,
    Jamais esquecerei daquela aula! Sou campeão de pagar micos, mas aquele foi para entrar na galeria! E, na crônica, está minha confissão: errei, sim – não era teste.
    Aos dois, aquele abraço!
    Rubem

  9. Foi com muita surpresa e encantamento que li a sua crônica (e vc nem me enviou pra que eu a revisasse!! hehe). Fiquei muito maravilhado e até envaidecido (menos, menos) com suas palavras sobre o ofício – muitas vezes penoso – da revisão. Concordo em tudo, gênero, número e grau. Não sou revisor 'nazista'; tento, ao contrário, mostrar ao autor/jornalista o que pode ser melhorado, o que costumeiramente acontece (e alguns até agradecem, por estarem tão cegos envolvidos em sua obra que está prestes a ir pra gráfica). Como brinco sempre, não sou padre, nem psicólogo, mas meu ganha-pão é revisar os erros dos outros! E, como toda prostituta, tenho lá uma clientela que me é fiel há vários anos! Parabéns, Rubem Penz! Sua crônica foi a ótima notícia no meio de uma revisão de um livro de 250 páginas! Abraços tricolores, Luís Augusto Lopes

  10. Luís Augusto, grande revisor da Santa Sede (entre outras obras), muito grato pelo comentário! Sou teu fã! Menos, é claro, quando o assunto é esporte. Mas estou 7 X 0 em paz… Abração, Rubem

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