Caminhando sobre gelo fino

Rubem Penz

O Brasil não tem inverno lá muito rigoroso. Nosso frio mais cortante faz morada nas serras catarinense e gaúcha e, apesar de ser suficiente para “renguear cusco”, dito no bom dialeto sulino, não é o bastante para produzir mares, lagos e rios congelados. Portanto, minha única experiência com a tarefa de caminhar sobre o gelo vem de filmes e documentários, pois, nem mesmo em minhas viagens ao norte, deparei-me com tal desafio. Já os habitantes dos lugares em que os termômetros se distanciam do zero para baixo adquirem capacidades específicas. Se por contingência ou necessidade até mesmo os pesados ursos polares se deslocam sobre as lâminas d’água, imagina os delgados humanos? Ainda assim, quando o frio abranda e a espessura do gelo diminui, o risco de o chão se partir sob os pés torna-se iminente.

Defronte a tela da TV, aprendi um pouco sobre iminência. Para enfrentar o solo instável sem tomar caldo, a primeira e mais importante lição é utilizar todos os sentidos e distinguir o fato. Depois, se é preciso trilhar, isso deve ser feito cercando-se de todos os cuidados, ferramentas e técnicas. Ninguém em sã consciência vai sair pulando: todo movimento será medido, suave, cuidadoso. Divide-se o peso. Desliza-se, de preferência. Como não se pode interferir na estabilidade do chão, resta o respeito à natureza das coisas. Render-se às evidências nunca será visto como covardia, muito ao contrário: o êxito virá graças ao reconhecimento do poder contrário. Coragem é ânimo, não precipitação, inconsciência, burrice. A prudência é a doma do medo e, em perigo, o medo é nosso mais valioso salvo-conduto.

Como disse lá no início, aqui não faz muito frio e, aparentemente, o tema não nos afeta. Mas há lições a serem retiradas do ato de caminhar sobre o gelo fino porque neste país, ainda que de modo figurado, estamos sobre ele neste exato momento. Eu mais do que você, você mais do que estivera antes. Em tempo quente, a comunicação (principalmente por escrito) afina o solo debaixo dos nossos pés. Toda frase (ou palavra) mal pensada é um esforço danoso para quem deseja se manter íntegro, para os que aspiram seguir em frente. Depois de o chão partido, não é a morte. Ainda assim, as consequências serão graves. Talvez demandem socorro, certamente impõem sequelas. Onde se lê “apagar incêndio”, pode-se entender “salvar quem afundou”. E afundar anda muito fácil. A primeira e mais importante lição será reconhecer o fato. Avisado que está, de agora em diante seja prudente nas palavras. Cauteloso, leve.

Aceite meu conselho: escreva como quem caminha sobre gelo fino. E boa sorte!

Crônica publicada no Metro Jornal em 04.04.2017

 

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