Conto contíguo 3

CONTO CONTÍGUO

 

BINÓCULO

 

         Espero, paciente, ela adormecer. Sigo sua rotina com devota atenção: bem sei quando repousa em cada um dos dias da semana. Então, recorro à minha gaveta de cabeceira e apanho o binóculo. Ele, somente ele, nos deixa no afastamento ideal – o mensurado equilíbrio entre distância e proximidade. Através dele, ponho-me a observar.

         Ela tem um sono tranqüilo. Inabalável. Cobre-se pouco e, na visão furtiva, acompanho os falsos movimentos nascidos da luz hesitante da TV, ainda acesa. Ajusto o foco em busca de mais detalhes… Quem sabe hoje penetro em seus sonhos? Este ânimo, noite após noite em desatinada insônia, faz correr o tempo de minha vigília.

Esgotado o prazo do timer – às vezes trinta, outras sessenta minutos –, a TV apaga e o quarto imerge no escuro e no silêncio.  Condenado a vultos, liberto a imaginação: beijo seus pés, apenas o começo do roteiro de delícias percorrido por meus lábios. Aspiro fundo o aroma de seus cabelos e roubo um pouco do seu hálito. É quando ela me vê, quase num susto. Sorri e se entrega com a generosidade das amantes.

Ah como eu queria a oportunidade de contar-lhe essa minha história. Revelar exatamente como ela é quando vista à distância, depois de cruzar as lentes. Dizer em pormenores o que faz, tudo o que me diz, como me trata. Emprestar-lhe o binóculo, também, na esperança de corresponder com igual magia. Por enquanto, me falta coragem para fazê-lo.

Desviro o binóculo do contrário e aponto na direção da janela: cresce a lua minguante, testemunha calada dos meus delírios. Suspiro. Abro outra vez a gaveta e o guardo de volta. Confiro o quanto é tarde no rádio-relógio e deito ao lado dela. Que, sem despertar, move-se inocente para perto de mim.

 

2 comentários em “Conto contíguo 3”

  1. Toda relação, para ser saudável, deveria permitir-se esse olhar “à distância” de vez em quando…

    Belo conto. Preciso, envolvente.

    Parabéns – ou seriam “parapenz”?

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