Donde há de vir e julgar

Rubem Penz

E se depois de tudo, lá adiante, num dia qualquer de sol ameno, cálido, lembrar do amigo por ele ter o zelo de servir um café temperado com cravo da índia, explicando o quanto isso suaviza o amargor, isso será muito ou pouco?

E se for encontrada uma dedicatória de sincero afeto naquele LP transformado em preciosidade, e com as palavras voltar a certeza de que nenhum desentendimento será capaz de destruir uma ligação fraterna, isso será o bastante para acalmar o coração?

E se, depois de desfigurarem um bairro inteiro, restar somente poucas casas cujas janelas testemunharam os périplos noturnos da juventude; se os olhos a espiar forem os mesmos e se sorrirem secretamente não a mim, mas a meu filho, terá isso o poder de uma bênção?

E se tivermos esquecido de quase todo o conteúdo ministrado pelo professor, afinal ele não se encaixa em nossas necessidades imediatas, mas lembrarmos de modo nítido de seu genuíno interesse em transmitir conhecimento, isso fará toda a diferença?

E se, fragilizado por uma perda, alguém com quem não se tenha a menor camaradagem ofertar um abraço seguro, verdadeiro, sem a pressa da formalidade estéril, isso virá com a medida certa de conforto?

E se um colega a quem jamais creditamos fé sair, feito um leão, a defender a honra ou a integridade de terceiros – ou mesmo da gente – diante de uma injustiça, isso será esquecido com facilidade?

E se a fugaz namorada voltar à memória ao ver a foto de um banco de madeira pintado de marrom, e a lembrança do sabor da descoberta do próprio desejo enternecer o coração, isso recomporá o fascínio de ter aprendido a amar?

E se um amigo casual fizer por nós o incomensurável favor de escutar nossas queixas sem o peso da censura e, com seu silêncio generoso, permitir à nossa própria consciência uma manifestação, isso mudará destinos?

Suponho que você, tanto quanto eu, tem motivos grandiosos e singelos para ofertar gratidão àqueles a sua volta. Tanto aos que sempre estiveram por perto, quanto aos de passagem instantânea, surpreendente e precisa. Também creio termos feito a diferença na vida dos outros quase sem perceber – quando distraídos das grandes metas.

Isso, nada além disso, isso acima de tudo, tem o poder da absolvição: o bem, o insuspeitado e valioso bem, feito sem premeditar. Hoje e na hora da nossa morte. Amém.

Crônica publicada no Metro Jornal em 28.06.16

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