Número 208

O MAIS CARO

 

No final deste verão, um incêndio provocado por um raio destruiu o salão do antigo Hotel Vendaval, localizado na minúscula Praia do Barco, um entre tantos balneários do Litoral Norte do Rio Grande do Sul. Fazia bem mais de vinte anos que nenhum hóspede por lá passava – o prédio, na verdade, apresentava uma lenta e dolorosa decadência. Mesmo assim, foi como se as chamas alcançassem o meu coração, distante mais de uma centena de quilômetros do local. Era uma parte importante da minha infância e adolescência virando cinzas.

 

Atualmente, o salão servia de casa para um dos herdeiros, meu amigo Márcio. Portanto, a parte do meu coração que não estava chamuscada, se manteve apertada no peito até que as notícias viessem mais tranqüilizadoras – ninguém ferido, graças a Deus. Mesmo assim, a fúria e a velocidade das labaredas indicavam para a perda material em grande escala. Ou, em outras palavras, não sobraria nada (como, de fato, quase não sobrou). Perguntei sobre os instrumentos e equipamentos musicais (ele é cantor): o que estava no salão, foi perdido. Perguntei pelas roupas e móveis: queimou tudo. Será que nada havia se salvado? Parecia que sim.

 

Algum tempo depois, me contaram que do tal amigo não restou nem a roupa do corpo, que acabou queimada no entra e sai do prédio em chamas. Logo, ele havia se arriscado para salvar, sim!, os seus pertences. Uma TV, quem sabe. Ou a mesa de som, ou um que outro microfone mais difícil de repor. O faqueiro, o microondas, a geladeira, o fogão… Que nada. De acordo com os relatos, este homem se muniu de coragem para buscar algo muito mais caro, precioso demais: alguns quadros com fotos históricas do hotel, da sua família, da nossa praia.

 

Calejado por uma vida que lhe impôs muitas e dolorosas perdas (até mesmo uma filha), o habitante desta casa em chamas não viu a necessidade de salvar nada que lhe valesse no presente ou no futuro. Onde dormiria, o quê vestiria, como cozinharia dali para adiante eram problemas melhor administráveis, em sua urgente escala de valores, na comparação com a perda de imagens impossíveis de serem recuperadas. Imagens sem preço.

 

Fiquei pensando na quantidade de vezes que tragédias metafóricas com a magnitude deste incêndio arrasam as nossas vidas. E também nas diferentes reações que teríamos diante do incontrolável. Poderíamos, quem sabe, sentar inertes no meio fio e chorar todas as perdas, consolados por estarmos a salvo – quem haveria de nos condenar por agir assim? Ou avançar sobre as chamas para buscar nossos bens materiais, nosso dinheiro, aquilo que nos custou tanto sacrifício para comprar, podendo, com isso, até morrer. Mas, provavelmente, os mais sábios seguiriam o mesmo impulso do Márcio, renunciando à segurança pessoal de modo calculado para resgatar aquilo que nos é mais caro, o que é impossível ser recuperado se virar cinzas: a própria imagem. A ninguém deveria faltar coragem ou ímpeto para salvar sua história.

4 comentários em “Número 208”

  1. Oi Mano,
    interessante é que eu me arriscaria para salvar as pessoas, mas depois que elas estivessem salvas eu iria tentar recuperar o disco rigido onde tenho o backup de todos os meus dados, incluindo todas as nossas fotografias.
    As mídias mudam de formato (papeis ou dados binários), mas o ser humano ainda é o mesmo.
    Abraços,
    Paulo H.

  2. Paulinho,
    é isso mesmo: estando as pessoas salvas, salve-se a memória!
    Mas fui além, pois, junto com nossa memória, vale a pena manter a salvo dos incêndios metafóricos a nossa própria imagem – nossa integridade, nossos valores morais. Isso, junto com os registros do disco rígido, não tem preço!
    Um super abraço para esta família querida!
    Rubem, Márcia, Ivan e Clara

  3. Marcos Dillenburg

    Querido amigo Rubem
    Passo por aqui para te parabenizar pela iniciativa de aumentar o alcance de tuas crônicas com este blog. Teu trabalho é também um resgate, não de um incêndio, mas da sensibilidade necessária à percepção do que é importante na vida.
    Um grande abraço, Marcos R. Dillenburg

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