Renner, 100 andares de fumaça

Rubem Penz

Numa capital que mal engatinhava em seu processo de verticalização urbana, os dez andares das Lojas Renner ainda impressionavam, mesmo que não fossem visíveis de bairros distantes. Isso porque havia muitos prédios rivalizando em volta, alguns dos quais em terrenos mais altos. Tivesse 100 andares, aí sim! Pois, em 27 de abril de 1976, uma coluna de fuligem negra decuplicou o tamanho do edifício, fazendo com que fosse visto em um raio impressionante. Como sei? Simples: eu vi.

Este incêndio foi para minha pré-adolescência uma espécie de 11 de setembro: todos lembramos de onde estávamos naquela tarde, e a cidade nunca mais foi a mesma. Recordo de ter saído de casa logo após o almoço, a pé por algumas quadras, rumo à catequese. Subi a rampa da Igreja Nossa Senhora do Mont’Serrat e, antes de entrar, virei para trás com um colega apontando para sudoeste. Nunca vira nada parecido! Até o momento, só tinha registro de um incêndio de bom porte no Bairro Navegantes lá por 1970 (à época morava no vizinho São Geraldo), ou as imagens de TV do Edifício Joelma, em São Paulo.

Cumpri as obrigações de pequeno católico sem saber exatamente o que estava acontecendo. Apenas ao chegar de volta em casa compreendi a dimensão da tragédia. Minha mãe ficava entre o rádio e o telefone – qualquer porto-alegrense bem poderia estar dentro do prédio, inclusive, e perigosamente, ela. Enquanto não soubesse de parentes e amigas, não sossegaria. Depois, por semanas, o assunto retornava: mais uma descoberta atiçava a imprensa, outro conhecido que estava lá dentro, ou passando por perto, passava sua versão da história.

Neste período, quase todo o comércio e boa parte dos serviços tinham o Centro como endereço – o primeiro shopping, ao menos nos moldes atuais, só abriu suas portas em 1982. Por isso, as grandes lojas de departamentos eram destinos obrigatórios para os gaúchos. Não demorou para eu passar por perto. Guardo na memória olfativa cheiro de queimado: ele perdurou por muito tempo nos arredores. Na retina, a cicatriz deixada na esquina da Dr. Flores com a Otávio Rocha. Na alma, o relato de quem saltou das janelas em desespero.

De lá para cá, o que mudou? Ora, não mais se consegue enxergar aquele ponto da cidade do portão da Igreja do Mont’Serrat, nem cruzar com um piá de onze anos trilhando bairros de classe média a pé e desacompanhado. O medo, outrossim, segue firme: cheiro igual nos assombrou faz pouco, quando os altos do Mercado Público incendiaram. E a boate Kiss revelou quão térreos ainda estamos quando o tema é segurança.

Crônica publicada no Metro Jornal em 26.04.2016

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