Número 392

BONDE CRÔNICA

Rubem Penz

Há uma memorável crônica de Paulo Mendes Campos com o seguinte título: Por que bebemos tanto assim? Fala de bares, é claro, e traz algumas pérolas. “É preciso escolher bem o nosso bar, pois tão desagradável quanto tomar um bonde errado é tomar um bar errado.” Em nove de março, convidei um grupo seleto de escritores para, com eles, tomarmos um bar como quem toma um bonde: tínhamos um ponto de partida, uma trajetória a percorrer e um destino a cumprir. Cabia a mim ser o motorneiro da turma, aquele encarregado de levá-los a tal ponto que escrevessem crônicas para compilarmos em uma antologia. Partia a oficina Santa Sede.

A certa altura do texto, Paulo Mendes Campos cita Baudelaire: “É preciso estar sempre bêbado – de vinho, de poesia, de religião.” Santa Sede! Foram meses embriagados pelo ímpeto criativo. Saber beber guarda um parentesco com saber escrever. Questão de medida, ritmo, sabor, tempo. Também de torpor, ebriedade e delírio. Fui garçom vigilante – jamais deixei que o copo dos oficinandos esvaziasse. Dependendo do tema proposto, vinha a reclamação: a dose de dificuldade estava além da conta… Mas, ao final, todos resistiam bem. Ora ficamos tontos, ora apenas alegrinhos. Nosso trabalho foi muito sério e pouco sóbrio.

“Um bar legal precisa apresentar cinco qualidades fundamentais: boa circulação de ar, bom proprietário, bons garçons, bons fregueses e boa bebida.” Sim, isso é Paulo Mendes Campos. Quando pensei em abrigar a oficina em um botequim, precisava de um bar legal – por isso o Matita Perê. Desejava que a boemia imprimisse nos textos tanto sabor quanto o carvalho à bebida. Nossas qualidades também precisavam ser cinco: boa circulação de ideias, propriedade nos apontamentos, crônicas bem servidas, bons autores e… boa bebida. Juntando tudo, tivemos algumas noites nota dez. Na média, o bar e a oficina nos fizeram passar muito bem.

Em tom professoral, Mendes Campos alerta que “quem vende bebidas deve ser linchado quando exige de seus fregueses comportamento de casa de chá”. Quando a oficina começou, eu sabia que estaria, vez por outra, na selva das opiniões. Desejava isso, no fundo. O ambiente acadêmico e os centros culturais são locais excelentes para abrigar oficinas. Mas a crônica, e a poesia, têm algo de indomável em seu âmago. “A vida ao rés do chão”, conforme diz Antônio Cândido. Lidar com a descontração crônica das bolachas de chope, e nem assim perder a lucidez, estava na mesa. Colarinho branco, só o dos copos. Mas o chá sempre esteve liberado – tolerância plena com as diferenças.

Já no final da crônica, Paulo Mendes Campos acerta na mosca: “Transpondo a porta do bar, o homem age com toda a pureza e inocência, buscando fugir ao sofrimento, tentando cumprir a sua vocação para o prazer…”. É isso! Melhor, só mesmo se levar junto seus amigos, todos no mesmo intento. Dez meses atrás, embarquei uma turma de vocacionados num bar como se tomassem um bonde. Oficina Santa Sede. Cumprimos todo o trajeto dando curvas nas dificuldades, apreciando textos como quem está diante de paisagens, firmes para que jamais faltasse energia. Aos escritores, minha imensa gratidão por usarem minha companhia.
Agora, em nosso derradeiro ponto, a certeza de que tomamos o bar certo – um botequim bonde crônica, com perdão do inevitável trocadilho. E começa a viagem dos leitores! Convido você para ler Santa Sede, crônicas de botequim, Ed. Literalis, 238 páginas, 80 crônicas de oito autores inspirados. Autógrafos no boteco Matita Perê, nosso anfitrião, dia 26, terça-feira, 19h. Fica na Rua João Alfredo, 626, Cidade Baixa, Porto Alegre. Apenas sua leitura fará o livro cumprir o melhor destino. E, como está escrito na contracapa, “O Ministério da Saúde adverte: ler faz bem para a saúde”.

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