A teoria da moela

Na família estruturada sob o domínio patriarcal, a moela, iguaria unitária e diminuta de um frango, cabia ao provedor. Também a ele era destinada a primazia na escolha do corte de sua preferência. Aos miúdos, digo, aos filhos, eram franqueados os demais cortes da ave, mais ou menos nobres, dependendo do gosto do pai. Na época, o homem gozava de prestígio, ou de poder, para ditar regras que lhe favorecessem. E ai de quem questionasse tais regras. Eu sei porque fui criança nesse tempo.

 

Duas ou três décadas se passaram e a figura do homem provedor se tornou tão rara quanto galinheiro no pátio de casa. O número de filhos diminuiu radicalmente e as mulheres ganharam o mercado de trabalho. Um cenário tão modificado exigiu novos papéis e, com eles, novas regras. Quando o homem acordou, a moela já estava no prato do filho – ou dividida, em caso de mais de um bacuri. Agora, também, as crianças escolhem os pedaços do frango que mais lhes agradam. E ai de quem as desfavoreça. Eu sei porque sou pai nesse tempo.

 

Você já se deu conta de onde quero chegar: sou de uma geração desmoelada. Não comemos a moela quando éramos filhos e não estamos comendo quando somos pais. Para piorar, nada indica que comeremos quando chegarem os netos – os avós são uns derretidos. Mas não se compadeça, porque isso não é uma queixa. É uma triste constatação, carregada de implicações simbólicas. A novidade é que me tornei um revolucionário.

 

E contra o que luto? Contra leituras mal feitas de manuais pedagógicos e toneladas de culpa por pai e mãe estarem absorvidos pelo frenético mercado de trabalho. Criaram-se alguns monstros. Meninos e meninas de classe média cobertos de mimo e proteção; isentos de limites; imunes à frustração; devoradores de moelas. Hoje, pais são amigos e confidentes. Há liberdade que beira o acobertamento. No melhor dos mundos, os rebentos desaprenderam a questionar – questionar quem, se todos estão a meu favor? Assim, sequer saem de casa.

 

Aos dezessete anos eu já sonhava em morar sozinho. Tudo o que eu queria era um JK mal mobiliado e uma moela no prato. Azar que eu tivesse que prepará-la e lavar a louça depois – os ganhos compensavam o esforço. Tive pais dedicadíssimos e que pagaram aos filhos escola e médico particulares, mas nem em sonho nos deixaram (os filhos) mandar em casa. Mesmo sem uma cobrança explícita, estava claro que não podíamos perder o ano na escola ou sair e chegar em casa quando bem quiséssemos. Para se governar, era preciso, antes, se sustentar.

 

Sim! É isso! Para o azar – sorte? – dos nossos filhos, tomamos uma decisão revolucionária lá em casa: passem a moela para cá! Vamos dividi-la entre o casal provedor e saborear na frente das crianças. Horror, horror! Eles precisam crescer sabendo que há algo para perder e para conquistar. A paternidade já nos faz abrir mão de coisas demais, sem medir sacrifício. Não parece justo perder o controle da situação – sem falar de alguns bons prazeres. Quem quiser nos acompanhar nessa trincheira, não tire o olho da moela!

6 comentários em “A teoria da moela”

  1. Pois é, Augusto. É bem nesse ponto que me refiro ao fato de lerem os manuais de forma distorcida. Que ralem os joelhos para aprender a cair!
    Abraço,
    Rubem

  2. Marisa da Graça Burigo

    Gostei muito Rubem. Fui criada com limites. Hoje os papéis se inverteram: filhos querendo determinar regras aos pais e estes passando a mão por cima. Nunca estarão prontos para o mundo. Serão engolidos. Os pais precisam dar limites e mostrar que na vida não existem só flores. Precisam aprender a viver com frustrações , errar, acertar, tocar o barco e amadurecer. Abraço da tua aluna que muito aprende contigo e te admira 😍

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