CYBORG E A OLIMPÍADA
Nos anos setenta (1974-78), a série televisiva O homem de seis milhões de dólares – baseada no livro Cyborg – transformou o amputado Steve Austin, astronauta vivido por Lee Majors, em super-herói. Trinta anos depois, o atleta sul-africano Oscar Pistorius se aproxima do índice olímpico mesmo sem ter as duas pernas abaixo do joelho. Porém, é impedido de pleitear uma vaga para Pequim pelo Comitê Técnico da Federação Internacional de Atletismo (IAAF). Motivo: as próteses biônicas lhe garantiriam vantagens sobre os demais competidores. Longe da ficção, forjar heróis é mais complicado.
Toda a minha geração correu pelos pátios e calçadas imitando a trilha sonora que acelerava a performance do Cyborg. Na época, se nos propusessem trocar nossas pernas naturais por biônicas como as do Steve Austin, toparíamos imediatamente: não haveria quem nos segurasse no brinquedo de pegar, faríamos um gol atrás do outro, ganharíamos qualquer disputa de força e também, quem sabe, o coração da menina mais bonita. A medicina e a engenharia, desde antes e até hoje, trabalhavam com objetivos bem mais modestos, isto é, devolver para alguém que perdeu braços ou pernas a igual mobilidade dos ditos normais. Para um menino amputado que sonhasse correr tanto quanto eu, os superpoderes podiam esperar.
Em três décadas temos bastante a comemorar neste sentido. Creio que bem mais de seis milhões de dólares já foram investidos em pesquisa para assegurar a muitas pessoas, e não apenas a uma (ou duas, se lembrarmos da biônica Jemmie Sommers) a possibilidade de caminhar para além da cadeira de rodas. Contornando a fatalidade através da tecnologia, a humanidade devolve a quem precisa as condições, se não ideais, próximas de uma igualdade plausível. Tomara que, com freqüência, o Cyborg esteja anônimo, bem ao meu lado na fila da padaria.
Mas, e no caso de Oscar Pistorius, que em vez de compartilhar comigo a espera do pão, pretende estar perfilado na largada dos cem, duzentos ou quatrocentos metros rasos da Olimpíada de Pequim, que fazer? Ao negar este direito, conquistado no disparo do cronômetro, estaremos nos desviando do rumo que leva à igualdade entre deficientes físicos e pessoas com membros completos? São estas as questões impostas aos dirigentes da IAAF no momento.
Com base na letra fria dos resultados biométricos – que apontaram vantagens ilícitas no movimento das pernas postiças –, Pistorius precisará, ao menos por enquanto, contentar-se com as Paraolimpíadas. O temor dos técnicos repousa sobre o que está sendo chamado de doping tecnológico. Algo que, trocando em miúdos, lembra muito o dilema que Steve Austin impunha a uma criança na década de setenta: que tal trocar suas pernas naturais pela glória olímpica? A luta contra doping químico nos dá pistas para possíveis respostas antiéticas… Mesmo assim, uma aura de injustiça macula a decisão da entidade. Afinal, ela condena o menino que teve as pernas amputadas aos onze meses de idade à eterna marginalidade.
Por fim, a despeito da decisão tomada agora ou em apelações futuras, por seu dedicado esforço atlético e valor simbólico, para muitos deficientes físicos – e também para mim – Oscar Pistorius já é um herói.