Santa Sede – crônicas de botequim – Safra 2011 – Aperitivo

Diário de um detento

Valdomiro Martins

Nos degraus do condomínio cresço, cresci, mas não amadureci. Equilibro-me no topo da idade em que me suporto. Saltimbanco na rotina. Equilibrista no orçamento. Tenho defeitos infalíveis e qualidades eventuais na mais crua confissão. A indisciplina se distribui nas juntas, exala-se a cada tentativa frustrada na chave que não se encaixa. Às vezes me escondo, entro em silêncio na minha cova. No banheiro é que me encontro. Vizinho vida longa, mais longa é sua língua. Sempre enxerga o que não deve! Memorizei tudo, disciplina depois do emprego. Mas a realidade é Messalina. Rodo rápido, ralo, ração ao ramister. O sofá é trono da moleza. Sou realeza e devoro a paz como algodão doce. Jornal das notícias passadas, amassada a roupa de amanhã. Novelas se acumulam e a poeira vem em dobro. Visitas nunca mais! A vizinha estende lingeries. Meus olhos saltam e a ilusão transborda meu cesto de roupas sujas. Noite, bares, happy hour, cerveja Bauer, Jack Bauer na TV. Minha mão embrutece a faca que fatia legumes. Bendita dois gumes!

Morar só é sermos companheiros de cela de nós mesmos. Não temos escolha, pudor ou conveniências. Porém não há chantagens nem facções. Neste barco, que navega um rio circular, cobra-se apenas o esforço dos remadores. Não há sexo, mentiras nem videotape. Ao menos tenho DVD. O tempo é profissional, não aceita desculpas. Roupa suja se lava na rua. E custa caro!

Os meus problemas domésticos são frios e incorrigíveis. A sujeira é uma dívida bancária, minha preguiça são gastos incompossíveis. Refeição pronta no prato. Na mesa não precisa. Dispenso cerimônias. Sou simples, sincero e antiromântico. Ex-faminto graças ao arroz paçoca, carne canibal e o super ovo estraçalhado. Você é o que come! Então sou R.N.I (refeição não identificada). Meus talheres são marujos jogados à piscina de espuma. Saciar-se é preciso, lavar a louça não é preciso. Entretanto, louça suja é cara deslavada. Freeway das moscas e baratas. Respiro, expiro. Fé em Deus. Sou valente movido a álcool. Um copo de conhaque, ataque aos pratos onde gordura é carrapato. Quem não mandou aquecer a água? Uma empregada, por favor! Lamentos de um vencido. Razão tinha minha mãe, acertava em tudo. Só não acertou que não me casaria. E quem se atreve?


 

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