Coluna do Metro em 09.01.13
CONTRA O RISCO DE ME PERDER
Agora, enquanto escrevo, não estou exatamente em casa, mas estou em casa. A aparente contradição se explica facilmente. Não estou na cidade onde moro, destino das raras cartas e frequentes contas que o diligente Correio entrega, submetido à rotina dos dias normais. Estou em um balneário. Melhor: estou na Praia do Barco, um pedaço de areia em nada distinguível do imenso e retilíneo litoral gaúcho. Destino das ondas no também muito semelhante mar de chocolate. Apesar disso, para mim, muito distinta.
Estou na casa dos meus pais no ano em que ela alcança sua quadragésima primeira temporada. Antes, porém, passava os verões muito perto daqui, em terreno contíguo pela face dos fundos, na Vila Morena, chalé da minha avó. De onde escrevo, passando o vidro da porta da frente, uma vista para mim quase ancestral adivinha o oceano, que percebo por outro sentido – a audição. Ele está um pouco nervoso, hoje. Sei, porque nem sempre seu rumor chega tão audível nessa hora da preguiçosa manhã. Por tudo isso, afirmo com tamanha certeza: não estou em casa, mas estou em casa. Muito em casa.
Localizo-me em tantos detalhes para amplificar o que aconteceu quando por aqui cheguei para uns dias de férias. Incrivelmente, errei o caminho. Passei da nossa rua sem dobrar a esquina correta, via em que todas as pedras irregulares têm impressas as digitais de meus pés descalços. Num susto, alertado por meu próprio filho que estava ao lado, fui obrigado a fazer um retorno na quadra seguinte. Na hora achamos muita graça da situação. Era como se estivesse acometido de uma senilidade precoce, uma faísca de amnésia. Haveria uma explicação? Sempre há.
Algo muito profundo no inconsciente, disparado por uma visão distorcida do horizonte antes familiar, negou o comando automático. Recusou-se a identificar como minha a rua certa, mandou-me adiante até que a realidade fizesse as pazes com a memória. Só que Chronos torna algumas reconciliações impossíveis, e este é o caso. O enorme terreno (agora vazio) na Av. Praia do Barco, de onde sumiram os últimos resquícios do Hotel Vendaval, turvou minha visão ao suprimir a catedral dos meus afetos. Já não há mais lápide para contrição; não há mais epitáfio; não há mais referências. Não fui traído pela memória: ela que procurou, em vão – e aqui busquei a palavra certa –, ser-me fiel.
Trago esse depoimento que para cerrar fileiras com alguns defensores da história arquitetônica de Porto Alegre, em quixotesca luta contra a especulação imobiliária. Perder de bairros inteiros a referência estética é perder-se tragicamente a cada esquina, como aconteceu comigo na praia. Se nem tudo é possível preservar, uma medida há que ser encontrada. O fogo da ganância consome minha cidade natal. Não quero correr o risco de me sentir fora de casa, mesmo estando em casa. Perder Porto Alegre será, antes de tudo, perder-me.