Rufar dos Tambores número 514
Oração a dois
Rubem Penz
Ela:
Senhor,
Dai-me força para abrir vidros de compotas e conservas, ou capacidade de criar ferramentas improvisadas para cumprir com esse fim; também para trocar pneus, carregar pedras ou caixas, subir meu namorado nos ombros se ele desejar ver algo que sua estatura não permita;
Dai-me frieza e claridade de raciocínio para lidar com situações de emergência sem que eu jamais lamente a ausência do meu pai por perto (ou equivalente), evitando a paralisia ou o piti;
Dai-me autoestima inabalável para lidar com as imperfeições do meu corpo ou, no mínimo, senso de humor para que elas sejam vistas no espelho com indulgência;
Dai-me, Senhor, a chance de agir como um homem!
Porque é dos leves de espírito o Reino da Terra;
É dos livres de culpa o mérito das conquistas;
É dos brutos e toscos a pureza das ações;
Senhor,
Não esqueceis que desejo isso tudo, e o tanto mais que deixo nas entrelinhas, sem que lasque o esmalte, sem desmanchar o cabelo e calçando salto alto;
Também não pretendo abrir mão dos vestidos, joias ou bijus delicadas. Tampouco considero a hipótese de aposentar o estojo de pintura, nem que seja o básico. Ah, importante: que os esforços não estraguem minha suave silhueta, nem as exigências suprimam aquele tempo que gosto de ter só para mim.
Ele (eu):
Senhor,
Livrai-me da ira das feministas, uma vez que ouso fazer humor com assunto tão sério. É que sou homem e, como tal, adoro brincar com o perigo;
Livrai-me da patrulha do politicamente correto, da censura, da simplificação;
Fazei compreensíveis minhas intenções; mostrai que sou o Novo Homem, aquele com o qual as mulheres não mais competem, contra aquele que elas não mais lutam;
Aliás, ao contrário, Senhor: estou no mundo para fazê-las felizes, desde que elas definam mais ou menos o que querem de mim.
Amém.