Rubem Penz
Se existe algo que me dá prazer é caminhar. Pouco importa o bairro: em cada um há paisagens interessantes. Seja no mais distante arrabalde, seja na mais bela rua do mundo (foi eleita e fica aqui em Porto Alegre), ou nas movimentadas vias centrais, meus olhos tendem a buscar o insuspeitado. Casas antigas fascinam, prédios envidraçados impressionam, vitrines criativas seduzem. Pessoas estranhas são um cardápio de luxo: quase podemos criar nome, passado e trama para algumas figuras que cruzam por nós, de tão carregadas de verdade interior. Porém, existe um risco enorme em caminhar com a cabeça erguida à procura da contemplação. São as fezes de cachorro, que mais comumente chamamos cocô – um e outro termo não fazem a menor diferença quando gruda no sapato.
O tema é escatológico, sei, e o leitor pode estar neste instante lendo o jornal enquanto faz uma refeição. Sinto muito. Ainda assim, seguirei, pois desejo falar de uma especificidade nojenta: o rastro de m* deixado por alguém que andava, como eu, distraído. É o deliberado efeito da ação de um incivilizado que não cumpre o mínimo dever de zelar pela limpeza urbana. Afinal, são raríssimos os cães baldios, enquanto são frequentes os que passeiam com uma guia a qual contempla a mão humana na outra extremidade. Se me revolta ver um cocô na calçada, revolta muito mais ver meio cocô, enquanto a outra metade se dilui adiante.
Há dois tipos de rastros de fezes: o harmônico e o desorganizado. O primeiro acontece quando o caminhante não vê onde pisou, deixando um intervalo constante de cocô, paulatinamente esmaecido. Breve, aquele calçado entrará num automóvel, escritório ou casa, premiando o tapete com a desgraça. O rastro desorganizado, por sua vez, quase sempre nasce de uma escorregadela: o volume era grande e pastoso. O que se vê dali para frente são tentativas de limpar a sola, desfigurando o andar parelho. Com frequência o rastro aponta para um canteiro gramado, onde se consegue remover a parcela que subiu pela lateral do sapato. Com cuidado – canteiros são os preferidos para alívio das caninas urgências biológicas.
Duvido que seja apenas eu a reparar neste detalhe. E me surpreendo com o fato de isso não sensibilizar àqueles cujos cães sujam as calçadas. Será que existem pessoas com tamanha anestesia na consciência para não ver o sofrimento escancarado de quem busca limpar o sapato no chão, ou velado dos que carregarão tudo para algum tapete? Uma trilha destas é o mais perfeito alerta para que não se deixe o chão emporcalhado. É a evidência da má educação. Impor ao caminhante o dever de driblar cocôs é sonegar dele a apreciação da paisagem – fachadas imponentes, vitrines, personagens. E a cidade, tão bela, fica cabisbaixa, reduzida a rastros de odor e ódio.
Coluna do Metro Jornal em 29.07.2014