Rubem Penz
Na crônica “Da utilidade dos animais”, Carlos Drummond de Andrade nos brinda com nada sutil ironia quando uma amorosa professora de séries iniciais diz para a turminha as razões para eles gostarem dos animais. “Todos ajudam”, segundo ela. A seguir, proclama a utilidade dos bichos e, para os perplexos infantes, enaltece o fato de eles nos “darem” tudo, ânimo e corpo. Do iaque da Ásia Central, passando por texugos, cangurus, zebras e chegando aos pinguins, ninguém escapa. O texto termina com esse diálogo: “(…) devemos amar os animais, e não maltratá-los de jeito nenhum. Entendeu, Ricardo? Entendi. A gente deve amar, respeitar, pelar e comer os animais, e aproveitar bem o pelo, o couro e os ossos”.
Lembrei dessa obra prima quando soube da recente polêmica envolvendo nossa Fundação Piratini – TVE e Rádio FM Cultura. Para quem está por fora do assunto, houve quem indicasse a extinção, venda ou privatização das emissoras públicas alegando economia, uma vez que o Estado está em situação falimentar. Decidi, então, corporificar a professora para lembrar os aluninhos da utilidade dos artistas, antes de eles extinguirem seu habitat – emissoras comprometidas com a difusão educativa e cultural. Os músicos, por exemplo: deles, tiramos anos e anos de estudo em forma de recitais e concertos cujo brilho nos conecta diretamente com o Divino, nos diferencia das feras e nos dá o lustro necessário para compreender uma obra sinfônica, ou um chorinho, tango, jazz…
Mas não são apenas músicos que encontramos em emissoras distantes da lógica do lucro e da audiência de massa: atores, cenógrafos, diretores, coreógrafos e dançarinos também oferecem o couro, a carne e os ossos de sua existência para que os grandes autores encontrem um modo de fazer a humanidade sair da miséria de uma vida limitada. Sem tais emissoras culturais igualmente fica difícil de os palhaços ofertarem para nós suas entranhas e, com elas, salvar a sociedade da hipocrisia. E já pensou um mundo onde artistas plásticos deixarão de fornecer do encantamento à vertigem? Fotógrafos perdendo a visibilidade? Historiadores e filósofos terminarem calados justo quando precisamos desesperadamente de uma geração com senso crítico? Escritores sumirem da mídia quando já ninguém se mostra capaz de compreender um conto, poema ou mísera notícia de jornal?
Voltando ao Drummond, devemos amar os artistas, e não maltratá-los. Entenderam? – pergunto eu. Soubessem o quanto é difícil escolher o destino de ser consumido, respeitariam a Fundação Piratini. O povo não tem dinheiro para pegar um avião e devorar artistas no Primeiro Mundo. Tirar dele a chance de sintonizar de graça emissoras educativas e culturais é muita maldade. Até mesmo para quem vê cultura como algo inútil.