Rubem Penz
O sarau aconteceu sábado, em Caxias do Sul, durante a 31ª Feira do Livro. Estávamos em um restaurante e havia vinho, queijo, salame – cardápio ideal para uma primavera de nevoeiro e seis graus. Na plateia, escritores ou pessoas ligadas ao livro e à literatura. A proposta do encontro era trazer algum poema que fora marcante na formação de leitor e, se poeta, versos próprios. Andava tudo tão bem que eu devia ter desconfiado do destino. Ah, o destino… Ele fez com que pensamentos imprudentes saíssem pela culatra. Explico.
Lá pelas tantas, quando Joaquim Moncks, coordenador da Casa do Poeta Brasileiro, fez um pot-pourri que incluía Fernando Pessoa e Pablo Neruda, pensei: pobre de quem for escalado para ser o próximo a ocupar o palco. Sem microfone ou leitura de apoio interpretou os versos com o corpo inteiro, emocionando a assistência e arrancando merecidas ovações. Manter este nível de performance seria praticamente impossível. Ocorre que, mal pensara nisso, ao cessar das palmas, os olhos do mediador do evento se cruzaram com os meus. E o grande amigo (da onça?) Marlon de Almeida disparou o convite: venha, Rubem! Lamentável a minha sorte.
O que pode ser pior do que suceder um orador brilhante? Primeiro: ser um poeta bissexto. Segundo: trazer para a leitura os versos de um letrista (ainda que Chico Buarque) e, com ele, toda uma complicada discussão sobre ser letra de música poesia. Terceiro: ter o plano de declamar um verso próprio absolutamente de memória. O cenário da tragédia estava, enfim, completo. Sufoquei os maus pensamentos, suspirei fundo e, súbito, supliquei pelo anjo da guarda.
Por instantes pareceu que tudo sairia bem. Trouxe um dos melhores de Chico – Construção. Anunciei meus versos – Reverso. E, bem no centro do poema, o lapso. “Minh ‘água, minh ‘alma…”. “Minh ‘água, minh ‘alma…”. “Minh ‘água, minh ‘alma…”. Sumira a próxima palavra, carregando consigo todas as demais dali para adiante. Coincidentemente, o verso seguinte era “Ou miragem, ou me salva” (digo agora). Para mim, haveria salvação?
Ah, essa era minha sorte para o sábado… Num sarau de poetas, ao pedir pelo anjo da guarda, fora iluminado pelo Anjo Malaquias. Aquele de asinhas na bunda, criação de Mário Quintana. Mas, falhar e sair vivo – até mesmo receber a solidariedade dos aplausos – também deve ser creditado como bênção. O lapso tomou a dimensão de todos os meus pecados. Na plateia, gentil e compreensivamente, ecoou a absolvição das palmas. Obrigado, poetas: não mereci. Obrigado, Quintana: mereci.
Crônica publicada no Metro Jornal em 06.10.15