Rubem Penz
Quando já não mais inocência, ainda que a maturidade cobre léguas de distância, estamos sujeitos ao clamor das novidades, ao castigo dos hormônios, às – aparentemente – eternas e insolúveis dúvidas do ser. Pressa e medo de mãos dadas enquanto trilhamos sobre o precipício.
Quando já não mais amor, ainda que a intimidade nos oferte rotas seguras, somos irmãos presos ao incesto das horas, às algemas das aparências, aos desejáveis e indesejáveis costumes da procrastinação. Preguiça e dor moldando noite após noite os travesseiros.
Quando já não mais certeza, ainda que as dúvidas sejam menos do que centavos no bolso, ocupamos os armários com planos démodés, as paredes com retratos cujos sorrisos foram corrompidos por traças, os arquivos com carnês quitados de objetos há muito perdidos. Bibelôs inúteis cobertos com a poeira do tempo.
Quando já não mais ilusões, ainda que a utopia siga intoxicando a circulação que alimenta o sonho, mentimos tanto e tão intensamente para suportar a doma; juramos fidelidade diante do espelho e, vendo escorrer a lágrima, bebemos seu sal, imaginando-nos puros. Jogos muito baixos pedindo por novos e repetidos blefes.
Quando já não mais fé, ainda que crer seja tudo o que do tão pouco ainda reste, oramos em ladainhas vazias de sentido e cheias de (boas) intenções; confessamos pecados falsos e escondemos as culpas na consciência alheia. Sempre sem querer, viu?
Quando já não mais saúde, ainda que as enfermidades não signifiquem incapacitação, passamos a sofrer de uma nova consciência corporal, a suportar o descompasso entre o querer e o poder, entre o poder e o conseguir, entre o conseguir e o valer as penas. Vida e morte movendo poucas peças no tabuleiro, e nada poderá mudar regras ou desfecho.
Mas diz serem estes momentos de transição os mais ricos, os mais importantes, a vida em sua mais límpida essência. Atrás de novos “quandos” e adiante de velhos “ainda quês”, experimentamos o amargo para bem reconhecer o doce, se ali adiante ele nos couber. E o passo seguinte e o outro e o outro serão motivados pela esperança.
É: quando já não mais pureza, quando já não mais amor, quando já não já mais certezas, quando já não mais ilusões, quando já não mais fé, quando já não mais saúde, ainda que pareça o fim, se houver esperança, ela há de nos resgatar as forças para ir adiante.
Esperança – eis aquilo que, por hoje e para sempre, peço conseguir manter.
Crônica publicada no Metro Jornal em 27.05.2017