Rubem Penz
O tiro que atingiu um bebê ainda dentro da barriga de sua mãe, no Rio de Janeiro, deu-me a impressão de atravessarmos um novo portal na escalada da violência. Algo parecido com a transposição de fase em um jogo a partir da qual os desafios se tornam ainda mais complexos, difíceis e perigosos. Letais. A leitura fria indica ser apenas outra bala perdida encontrando-se com o destino de pessoas inocentes. Recuso-me a ser frio, no entanto, acusando o golpe e reconhecendo na tragédia um caráter simbólico.
Recebi a notícia como a antecipação do que podem esperar as crianças que sequer nasceram, condenadas a uma espécie de pecado original: ser brasileiro. Um tiro de advertência. Sinal de que essa sua vida mansa de útero não garante nada, muito pelo contrário. A vida aqui fora tornou-se selvagem outra vez, tem apetite mórbido e métodos cruéis. Culpas e desculpas a expiar. Foi uma bala a ferir de morte um conceito legítimo, se não estivéssemos em uma sociedade tão tragicamente desigual: o de que sempre teremos escolhas.
Quais escolhas teve essa criança, mesmo?
Mudemos de perspectiva e vamos pensar nas escolhas dos que estavam com o dedo no gatilho. Primeira hipótese: era um policial, homem cujo dever é proteger a população e a urgência é retornar com vida para casa todos os dias. Teria outra escolha senão disparar, assumindo o risco de ferir inocentes? Ah, como é fácil condená-lo sem vestir a farda, uma espécie de alvo pousado em suas costas. Segunda hipótese: era um criminoso sob a ameaça da lei ou de um oponente. Neste caso, puxar o gatilho é a única escolha que sucede outras tantas que, sabe-se lá quando, nem se sonha em quais contingências, começaram a ser tomadas antes, bem antes.
Agora, se é razoável compor um raciocínio lógico no qual, no exato instante, ninguém dos envolvidos teve outra escolha, onde encontrar alternativas? No aumento da violência oficial, dizimando soldadinhos do crime feito moscas para, feito moscas, ver eles se reproduzirem? Esta hipótese, sozinha, e por questão de matemática, somente faz crescer a chance de novas vítimas involuntárias, intra ou extrauterinas. (In)justamente aquelas absolutamente sem escolhas.
Proponho outras alternativas: fim da repugnante e impune hipocrisia dos que financiam o tráfico de drogas com o consumo; investimento consciente em bem-estar social (redes de amparo financiadas por programas de estado, jamais vinculados a governos); crescimento de nossa capacidade de respeitar, acolher e amar os inocentes, antes de cooptados.
Escolher o ódio será mesmo a única alternativa?
Crônica publicada no Metro Jornal em 04.07.2017