Crônica de contrição
RubemPenz
Leitor, eu pequei. E estou aqui para confessar.
Quando coloquei os olhos no banner virtual de Bridgerton na tela de abertura da Netflix, torci o nariz. Logo em seguida, retorci acompanhando o trailer: como assim? A corte britânica do século XIX com brancos e pretos!? Isso demorou uns duzentos anos para acontecer, e Meghan Markle está aí para não parecer que erro nas contas. Na real, fixei-me na realidade histórica (perdão pelo trocadilho) e perdi a oportunidade de, a partir do primeiro momento, perceber quão interessante foi a opção dos produtores, e quanto ela foi um acerto.
Esta crônica, por isso, é meu ato de contrição à divina justiça a ser feita.
O roteiro, baseado na série de livros escritos por Julia Quinn, é um retrato de costumes em volta das tramas casamenteiras na corte da época da Regência Britânica, especialmente de Daphnne (Phoebe Dynevor), a protagonista. Por si, este tema ganharia de mim no máximo um “vejo depois”. Dei-lhe uma chance ao reconhecer em Shonda Rhimes (produtora) o aval de peso, além do encantador trabalho de figurino e ambientação. E, claro, para conferir o resultado da sedutora corte colorida – especialmente representada por Regé-Jean Page no papel de Duque de Hastings.
Para bem da verdade, o que vi (ou vejo, pois ainda não terminei a temporada) é nada de mais. Diferença nenhuma. Tanto faz como tanto fez. Por isso, o máximo! Neste seriado, o que apareceu na tela se tornou aquilo que mais desejo para nosso mundo: a cor da pele sem protagonismo. Ou, em outras palavras, sem determinar papéis sociais, expectativas, preconceito. Um sonho o qual nem duzentos anos foi capaz de tornar possível: brancos, amarelos, vermelhos e pretos – e todas as milhares de nuances que a miscigenação permite – presentes em qualquer posição social. Neutralidade. Um enorme e retumbante “e daí!?” para os preconceituosos, tornando-os irrelevantes. A vitória de todos será o racismo migrar de aceito para nojento – em curso – e, depois, do nojento ao desprezível.
Com os pés no chão: muita palavra de ordem e denúncia grave ocupará os noticiários para chegarmos à ampla compreensão de que deve existir um só caminho até onde todos mereçam estar – sem a imensa desigualdade. No Brasil, desmontar a engrenagem social-econômica-política que atira para a base da pirâmide os afro-descendentes é uma dívida a ser sanada. Na ficção, como em Bridgerton, bastou uma decisão de casting para a cor da pele ser tão variada na tela quanto representativa para fins de ideal. Na vida, é mais complicado. E será impossível corrigir as injustiças sem reconhecer, de modo contrito, a existência de privilégios – nosso pecado de berço.