Mais do que o ó
Rubem Penz
A memória da gente funciona de modo estranho. Sempre penso nisso quando noto ter guardado fragmentos de cenas, entrevistas ou artigos sem aparente importância. Aí eles voltam para compor um raciocínio muitos anos mais tarde. É como o presente caso: recordei uma entrevista de um cantor sertanejo muitos séculos atrás (em termos de tecnologia), na qual questionava a necessidade de gravar álbuns com quase uma hora de músicas. O suporte CD ainda predominava e surgia o EP, menor e mais barato, com uma, duas ou três composições. À época, pensei: grande novidade! Isso não passa do renascimento do “compacto”, a bolachinha do tempo dos bolachões. Porém, desde ali era chocado o ovo da serpente…
E agora? Em pleno século 21, a música está cada vez mais na nuvem, cada vez menos em suportes físicos. A onda retrô até fez renascer os LPs, mas não vamos pousar nossa agulha em exceções. A regra do momento é seguir de single em single e deixá-los disponíveis nas plataformas de streaming. Antes de aprovar ou condenar tal processo, louvo o fato de que a arte se adapta aos novos caminhos para chegar ao público. Minha questão é: onde acomodar neste processo os inestimáveis tesouros outrora escondidos no lado B? Como forçar o artista a arriscar canções cuja função não será a aprovação instantânea, mas a nuance capaz de dar a ele três dimensões, profundidade, singularidade? Fazê-lo existir para além do hit, da onda, da música de trabalho?
Nostalgia do lado B só pode ser coisa de velho.
Talvez sim, talvez não. O fato é que me ouvi diante do álbum “Anavitória” favoravelmente surpreendido. Para quem ainda não as conhece (duvido), são meninas com idade para serem minhas filhas, de canto doce e para as quais dei importância relativa desde o começo – nem o ó, nem o ohhhh… E, sim, só conhecia uma parcela rasa de seu trabalho. Porém, elas mudaram em meu conceito quando pude julgar 13 canções enfileiradas. As escolhas, os versos e os arranjos se somaram em planos auditivos interessantes, dando pistas de sua vertente, indicando uma trilha com sinuosidades. Depois, com o CD nas mãos, outra alegria: letras impressas num encarte que, do outro lado, se desdobra num pôster. Coisa mais linda!
Fato: um álbum de figurinhas da Copa, por exemplo, não é feito apenas das mais brilhantes, os tão almejados escudos das seleções. Lá estarão os times cabeças de chave e os cabeças de bagre; as estrelas galácticas e os erráticos cometas; o estádio da final e todos os demenos. Também assim o álbum musical. Ele é a versão completa do artista, sua história para trás e para adiante, enquanto o single, ainda que brilhante, não passa de figurinha solta. Para quem curte futebol, os melhores momentos jamais serão o suficiente. Para os que amam música, como eu, apenas o álbum completo satisfaz. Até porque será ali o espaço para compor o superficial e o consistente, o efêmero e o eterno, a segurança e o risco. O ó e o ohhhh…
“Minha questão é: onde acomodar neste processo os inestimáveis tesouros outrora escondidos no lado B?” – Que questão intrigante! A resposta talvez esteja na sequência das músicas.
As primeiras três faixas, devem ser as mais populares. As posteriores, até a metade, devem ligar suavemente a emoção passada nas primeiras faixas com a segunda metade. Essa segunda metade deve seguir um decrescente da frequência respiratória. A segunda metade é o lado B.
Em resumo, imagina ouvir essa seleção depois da janta e logo antes de dormir.
DICA: faz a respiração diafragmática (não pulmonar!)
Exemplo: https://www.dropbox.com/sh/w1dmlw33lmd59sd/AABoSy3_wERl5h6Ud6gRcNPXa?dl=0
Excelente analogia, Paulo! Obrigado!