Afirmações peremptórias entre o terceiro e o quarto chope
Rubem Penz
Ando meio impaciente com a incansável campanha de difamação imposta aos bares e botequins. Toda tese apressada, todo pensamento tosco, todo raciocínio fraco é creditado como sendo “de botequim”. Quer diminuir o interlocutor? Acuse-o de colher sua teoria na mesa do bar. Para desfazer o argumento, cole nele um copo de vinho, chope ou cachaça. Ou pastel. Uma batatinha frita. Ovos de codorna. Depois das seis da tarde, especialmente se for sexta-feira, a humanidade perde automaticamente suas faculdades mentais – um mero balcão zera o QI. Os rabiscos do garçom na comanda apagam títulos na Plataforma Lattes. Confraternizar é visto como descredenciamento profissional. Divertir-se é para a patuleia.
Afirmo sem medo: é o contrário.
Dito isso, quando tentarem desqualificar seu argumento colando nele o carimbo “de botequim”, diga que, infelizmente, ele não é. Complete com um “antes fosse”.
Consultórios, escritórios, laboratórios e outros ambientes cujo verniz se faz compulsório tendem a ceifar a espontaneidade. Homens não vestem apenas gravatas e mulheres tailleurs – revestem-se de segurança, sobem a guarda, intuem ameaças em cada sombra. Protegem-se de tudo o que ameace a maior de todas as certezas: nossa despida humanidade. Tudo passa a ser tão importante e sólido e definitivo e inapelável a ponto de contaminar a mente, acovardando a criação. Imagina passar a vergonha de propor uma solução não usual? Uma flexibilização, um olhar diverso? Solidariedade? Somos sérios. O lugar disso, ora senhores, é o botequim!
Afirmo sem dúvida: ainda bem!
O bar abre espaço ao afeto, e afeição é artigo em falta no mundo corporativo, ou no mundo idealizado e frio das redes sociais. Troco agora mesmo cem likes por um abraço de boas-vindas à mesa. Não há emoji capaz de traduzir as pausas dramáticas que temperam as palavras do bom orador. E nem a mais áspera palavra será vista como ofensa quando o contexto for preservado. Discorda-se no bar? Sim. Discute-se? Talvez. A ponto de brigar? Há este risco. É para estes momentos que existem os outros, existe a troca de olhares, existe o tempo entre o botequim e o lar para esfriar a cabeça. Bem dizia Antônio Maria: quem deseja odiar alguém, fique longe. Próximo, nasce a camaradagem.
Afirmo (sem mais palavras): ufa…
Por fim, resta assegurar que nem o bar nos condena, nem a mais alta cátedra nos absolve. Ainda assim, se der para escolher, prefiro a companhia dos (e das) canalhas no botequim. Além de mais dóceis e divertidos e sedutores e inofensivos, no bar podemos tudo relevar com espírito quase cristão. Tropeços e atos vis praticados no âmbito profissional costumam ser muito mais prejudiciais aos interesses da sociedade. Dito isso, quando tentarem desqualificar seu argumento colando nele o carimbo “de botequim”, diga que, infelizmente, ele não é. Complete com um “antes fosse”. E convide o desafeto para um chope no final do expediente. Quem sabe ele se convença de que você tinha razão.
P.S.: Há vagas para o módulo “Circuito” na Oficina Literária Santa Sede. E a melhor notícia é ela não acontecer em Oxford, Sorbonne ou Coimbra, e sim no Apolinário, ali na Cidade Baixa, às quartas-feiras, 20h. Nosso objetivo é aprimorar a voz própria e a leitura crítica, juntar à nossa rede pessoas interessantes e, com sorte, ter o nome na memória do garçom – luxo para poucos!