A BARATA – Ela deixa a boca de lobo, corre pela calçada, entra sem dificuldade no jardim. Esgueira-se entre folhagens e intui o perigo – está muito exposta. Sobe pela parede, encontra uma fresta no trilho da janela e chega à cozinha. Agora pode descer de volta para o chão.
O ESCORPIÃO – Ele, em estado oculto, habita a escuridão dos espaços entre seixos e troncos. Não se mostra de dia e, à noite, deixa a toca apenas para perseguir sua presa que será vitimada por um lancetar certeiro. É quando, perto do intento, a vê subir com agilidade pela parede e sumir numa fresta de janela.
A LAGARTIXA – Lá está ela, no vértice das paredes abaixo da marquise. A barriga está cheia, fruto de recente colheita de insetos que orbitavam a luminária do jardim. Mas vê a barata subir pela parede e sumir na fresta. O desejo fala alto. Seu diminuto e especializado cérebro não pensa duas vezes: entra atrás dela.
O HOMEM – A esposa tem sede e não quer descer para a cozinha. Cutuca-o. Teme o que possa estar revelado pela noite alta. Frescura, não tem nada, pensa o homem, na escada a caminho da cozinha. No entanto, mal aciona o interruptor e já vê a barata que cessa o movimento, incrédula de sua falta de sorte. Ela está no centro da peça, desafiadora, provocativa, asquerosa.
A PERSEGUIÇÃO – No teto, corre a lagartixa para trás da geladeira, ali estará segura. No chão, corre a barata para baixo da pia, crê ter escapado. No mesmo segundo, corre o homem atrás da barata, já sem a Havaiana do pé direito. Sem alcançá-la, pensa em alternativas. Busca o veneno. Borrifa para forçá-la a se mostrar. A barata corre novamente, novamente o homem corre. Ele erra a primeira chinelada, oh Deus. Depois, ainda erra a segunda.
O DESTINO – Aplicado o derradeiro golpe, orgulha-se de seu intento. De seu mocó, o escorpião vê sombras agitadas que saem pela janela da cozinha sem dar importância alguma. Bem-criada, a lagartixa sabe que tem no homem um aliado. Escondeu-se por mera força do hábito – e se fosse a mulher? Melhor prevenir. De volta ao quarto do casal, o homem entrega o copo d’água e, quando perguntado sobre o que houvera lá embaixo, desconversa.
A MORTE – Ah, a barata… Por gerações vem lamentando sua aparência antipática, desnecessária e abominável. Tornara-se sinônimo de sujeira ao habitar esgotos. Se reproduz mais do que os ratos e colhe o nojo de toda a humanidade. É motivo de pesadelos. Jazeu por segundos no chão da cozinha antes de ser apanhada por uma pá e uma vassoura para ser colocada no WC do banheiro da área de serviço. Após a descarga, seu corpo retorna de onde partira para alimentar outras baratas.
Cada parágrafo corresponde a um momento da música. Ler escutando-a fica ainda melhor! https://open.spotify.com/track/5OOR7iX9b4dlT5EdrESY6v?si=n0OYFQWZReyD2vPqXnAMbQ