Lavar as mãos antes de mais nada

Rubem Penz

Quem circula nas ruas mais cedo ou mais tarde encontra aqueles que nelas moram. Quando os trajetos são de alguma forma rotineiros, cria-se certa intimidade com os habitantes do lugar. Mesmo que se esteja de passagem, desenvolvemos ares de vizinhança e, neles, naturais simpatias e animosidades. Então, dependendo da disposição, da formação e dos valores de cada um, ajudamos aqui, desprezamos ali, admoestamos acolá. São sutis retratos do dia a dia em uma metrópole.

Um dos mais simpáticos moradores de rua que encontro com frequência pede moedas à noite numa importante avenida da cidade. Abre um sorriso encantador, olha o motorista nos olhos e jamais causa repulsa ou apreensão. Aceita com a mesma face a negativa ou o oferecimento de ajuda, carrega sacos de lixo nos ombros e não parece ter 40 anos de idade. Um dos mais antipáticos faz ponto na mesma avenida e horário, alguns quarteirões mais ao Centro. Tem idade semelhante e traz nas mãos um limpador de para-brisas. Porém, nem mesmo a positiva oferta de um serviço em troca da moeda disfarça sua agressividade e periculosidade. Dá medo.

Para estes dois, tudo o que tenho são impressões reveladas nos instantes de um sinal vermelho, chamem isso de preconceito ou sensibilidade. Com um terceiro rapaz, porém, que está fica onde estaciono o carro quase diariamente, mudam as relações devido a ele acompanhar minhas chegadas e partidas. Assim, temos pequenas confabulações na democracia das calçadas. Também é um homem jovem, demonstra franqueza e simpatia nos olhos e tem consigo um cão bem cuidado. Só pode esconder um drama pessoal muito grave, pois tudo o que vejo autoriza a imaginá-lo como um cidadão integrado, com casa, família, trabalho e dignidade. Só que não.

Em nosso último encontro, ao alcançar os R$0,25 do bolso em troca da saudável vizinhança, reparei em suas mãos sujas. Tão encardidas que, contra a vontade, não pude conter certo nojo. E, tendo um posto de gasolina ao lado, pensei: por que ele não lava as mãos, se isso está ao seu alcance? Afinal, são elas nossa interface com o mundo e o símbolo mais básico de asseio e autoestima. Fui adiante: seriam as mãos sujas causa ou consequência do seu mau estado? Causa ou consequência do meu mal-estar? Daí lembrei das clássicas mãos sujas por este Brasil. Imundas. Como esperar outra coisa, senão indigência moral, antes de simplesmente ter mãos limpas a pedir/oferecer? E a sujeira será causa ou consequência da situação? Respostas que não tenho e valem bem mais do que R$0,25.

Crônica publicada em 17.03.15 no Metro Jornal Porto Alegre

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