Número 216

PEDÁGIO INVERTIDO

 

Bem-vindos à mais nova polêmica sobre a educação brasileira: a proposta de o Governo Federal premiar a aprovação dos alunos carentes com dinheiro vivo no final do ano letivo, via Bolsa-Família. As autoridades esperam, assim, combater dois problemas com um só disparo (munição sacada no bolso do contribuinte, é claro): evasão escolar e miséria. A idéia não será mais passar de ano, e sim passar no caixa. Uma espécie de pedágio ao contrário: passou, recebeu. Faço uma força enorme para crer que os tais çábios* que nos governam têm sempre razão. Assim, vou seguir-lhes o exemplo e instituir, em casa, um programa semelhante para meus filhos. Explico.

 

Não mais vou investir meu precioso tempo ensinando para as crianças a importância de se fazer refeições balanceadas. Eles não precisam conhecer as particularidades de cada grupo de alimento, as vantagens das frutas, verduras e legumes frescos; o problema da ingestão exagerada de açúcares e carboidratos; as conseqüências do uso abusivo do sal, entre outras boas orientações para toda a vida. Faço assim: eles comem tudo o que lhes é servido e, no final do ano, prometo pagar-lhes R$204,00**.

 

O filho mais velho, que está usando aparelho odontológico, não precisará mais fazê-lo de modo disciplinado por conhecer seus benefícios. Ele não necessita saber que o cuidado com os dentes é uma questão de saúde, afetando desde a digestão, passando pela respiração e chegando até à postura, prevenindo doenças futuras. Eu não vou dizer para ele que, sendo diligente no uso do aparelho, o tempo de tratamento diminuirá. Digo apenas que, colocando-o, no final, ele ganhará R$204,00.

 

Economizarei um esforço gigantesco em cobrar aprendizado escolar, também. Afinal, gasto boa parte do meu tempo demonstrando que o progresso é resultado de investimento pessoal constante e disciplinado. Aponto o conhecimento como a chave que abre as portas para uma vida plena, ao contrário da ignorância – a maior das barreiras. Ensino que cumprir as tarefas, ser pontual, ordeiro e esforçado é uma obrigação estudantil. Quem sabe o mais correto seja prometer, ao final do período letivo, R$204,00, caso passem de ano.

 

Sair no frio bem agasalhado; dizer com licença e obrigado; olhar para os dois lados antes de atravessar a rua; guardar os brinquedos e material escolar depois do uso; segurar corretamente os talheres… Tudo pode ter um preço e, ao final do ano, valer outros R$204,00. No fim da crônica, meus filhos terão aprendido uma grande lição: como faturar R$816,00. Pavlov, e seu cão que salivava ao tocar a sineta, será o meu orientador educacional. Mais: vou fazer igual ao Governo – uma vaquinha entre amigos e parentes para essa quantia vultosa não sair do meu bolso. Çábio é distribuir o dinheiro dos outros!

 

P.S.: Como o Governo sempre cancela os reajustes salariais dos professores, eles ficarão no comando da cancela deste pedágio invertido, vendo passar alunos e verbas.

 

*   Çábio é uma expressão de autoria original de Millôr Fernandes.

** R$204,00 é, segundo a imprensa, o valor em estudo para a aprovação.

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