Número 246

(DES) AMOR ETERNO

 

Tenho um amigo que, de tanto sofrer (provocar?) desilusões afetivas, sepultou de vez a crença no amor ideal.   Mas, nem por isso, perdeu a fé no “felizes para sempre” – o que parece um contra-senso. Na verdade, passou a escolher as namoradas com um rigor científico. A pesquisa, porém, não busca conhecer as qualidades que fariam da moça uma companhia duradoura: investiga como será a reação dela no pós-rompimento. Com o fracasso tido como certo, o negócio seria ser feliz no depois. Posso imaginar a cena…

 

É domingo. Primavera. O parque distribui com ampla generosidade panoramas ideais para os mais diversos roteiros: relva macia, flores de suave perfume, sol cálido, brisa amena. Ali convivem crianças saltitantes, pais zelosos, vendedores de pipoca, cães sob controle, pares românticos. Alessandro está deitado, pernas estendidas e cruzadas. Apóia-se em seus cotovelos e descansa os olhos no meio sorriso de Ana. Ela, sentada quase de lado, mão direita na grama, também lhe fita a boca, desejosa de novos beijos. Desde sexta-feira tudo corre muito bem entre os dois. Os ares são de eternidade quando, sensível, ela vê uma sombra correr sobre a face do rapaz.

 

– Aconteceu alguma coisa, querido?

 

Alessandro diz que não é nada. Ela duvida. Ele reluta em admitir que pensava em como seria o seu ex. Ana aperta as vistas e desfaz o sorriso. Apruma-se, cruza as pernas e repousa as mãos nos joelhos. Não gostaria de falar do assunto. Agora é Alessandro quem insiste. Na certa ela que teria despachado o namorado – supõe ele, como quem pede a confirmação.

   

– Zé Otávio era um canalha!

 

Ao revelar o nome, Ana se incendeia. Passam-se dez minutos enquanto um monólogo rico em detalhes desfila nada menos do que vinte razões para desqualificar Zé Otávio. Alessandro jamais altera as feições, nem mesmo quando, a folhas tantas do processo acusatório, ele se identifica com os diversos defeitos do pobre Zé – principalmente com coisas do tipo “parecia distante, como se pensasse em outra mulher”.

 

– Mas você é totalmente diferente dele, querido!

 

Ana acaricia o rosto de Alessandro que, agora sentado, retribui com um longo beijo. As crianças brincam diante do olhar atento dos pais, os cães passeiam, o pipoqueiro faz sua propaganda, o casal volta a se recostar no gramado. Alessandro cochicha para Ana, entre mordidas em seu ombro:

 

– Não dá nada. Aposto que esse tal Zé Mané foi uma exceção na sua vida.

 

Ana se eriça outra vez. Quem dera fosse! O Leandro que, por ser arquiteto também, ela ainda encontrava por aí, foi outro cafajeste. E, para piorar, deixara dela para ficar com uma loirinha sonsa, fútil. Mas se mereciam, os dois! E, em outros dez minutos, a moça destila ódio por Leandro, com sobras para Zé Otávio e leves menções desabonadoras a um certo Betinho.

 

Alessandro olha para os lábios de Ana, mas desliga-se da conversa que segue. Pensa agora em Luísa, professora de Educação Física, separada, e que, ao se referir ao ex-marido, dissera ter sido um cara bacana, e que era uma pena não ter dado muito certo.

 

Pois é: precisava ligar para Luísa.

1 comentário em “Número 246”

  1. Pois é. Em minhas aventuras pela Europa, sou tomada por inglesa, ou coisa que valha, e em Barcelona, cada vez que eu tentava tirar meu parco espanhol do bolso ( catalão nem pensar,dá até para ler, mas para falar ou entender o que dizem… impossível), as pessoas tratavam de dirigir-se a mim em inglês… Coisas de turista.
    Agora, azar mesmo, é ser alérgico a camarão! Adorei tua crônica, é claro! E me senti completamente solidária.

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