O movimento migratório dos pedestres

Rubem Penz

Porto Alegre recebeu dois excelentes cronistas durante a 60ª Feira do Livro e eu estava lá para escutá-los, aprender com eles, deixar-me encantar: Humberto Werneck e Luís Henrique Pellanda. Um, vindo de São Paulo. Outro, de Curitiba. Ambos profundos conhecedores deste peculiar gênero literário que une escritor e leitor como poucos, pois utiliza o jornal como veículo. Dois grandes artistas – laboriosos, sensíveis, inteligentes. E o interessante: dois convictos e orgulhosos pedestres. O mais jovem, Pellanda, gabando-se de jamais ter feito um documento de habilitação para ser motorista. O mais experiente, Werneck, cada vez menos prisioneiro das amarras do cinto de segurança.

Com eles, o testemunho de que os temas crônicos acontecem, ou se revelam, neste espaço-tempo propício ao encontro entre as pessoas. Apenas enclausurados dentro dos automóveis, muitas vezes com vidros escuros e lacrados, perderíamos o contato com a maior riqueza urbana: a diversidade. Concordo. Dentro do habitáculo, escutamos o que nos apraz, regulamos a temperatura, escolhemos quem estará conosco. Tememos toda abordagem e nos irritamos com a impessoal e congestionante companhia dos outros carros. Pior: são ceifadas de nós as oportunidades e os ângulos de contemplação do trajeto, pois as distrações costumam ser premiadas com acidentes.

Fui aos livros e comprovei a impressão de que eles não estão sós. Na obra publicada de Paulo Mendes Campos, Antônio Maria, Rubem Braga, Vinícius de Moraes, entre outros monstros da crônica, muitas cenas foram testemunhadas por intermédio do circular pedestre na cidade. Será isso uma característica de outros tempos? Não… Também cronistas contemporâneos, tais como os cariocas João Paulo Cuenca e Marco Antônio Martire, colhem suas impressões mais nos passos do caminho, menos no rodar dos pneus. Eu mesmo fico maravilhado com as oportunidades do simples trilhar nas ruas despido do exoesqueleto de aço (por assim dizer, e bem na moda, nu).

Por falar em pedestres, em época de Feira, as calçadas do centro de Porto Alegre ganham de volta o sol da primavera, as flores de Ipê e os visitantes migratórios. Migratórios? Sim! Fico impressionado quando alguém me diz que só frequenta as cercanias da Praça da Alfândega quando chega novembro e a festa dos livros. No restante do ano, a vida acontece do carro para o shopping e do shopping para o carro. A exemplo dos amigos Werneck e Pellanda, tanto quanto consigo, teimo em subverter essa lógica. Porém, não posso condenar os que evitam as calçadas. Enquanto uns se ocupam com a poesia da crônica, outros se preocupam com as páginas policiais.

Crônica publicada no Metro Jornal em 11.11.2014

 

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