Os sons da saudade

Rubem Penz

A saudade se manifesta nos cinco sentidos. Uma casa de verão, por exemplo, tem cheiros só dela – sempre que vou à Praia do Barco, revisito infância e juventude apenas por respirar. E se tenho a bênção de renovar as lembranças porque a casa da família está firme, nem isso é preciso: recordo como se hoje fosse o cheiro da “cozinha de baixo” da Vila Morena, a casa da vó na mesma praia, décadas depois de ela ter sido desativada. Sem sair do litoral, afianço que minha pele sabe como venta neste sul de mundo – maresia e areia pinicando pernas e braços, arrepiando o tato.

Outro sentido que desconhece o tempo é o paladar. Quando determinado sabor nos assalta, as recordações transcendem limites e a viagem ao passado se faz instantânea. Daí a importância de passarmos receitas de geração em geração: sabores contam muitas histórias. A visão, nosso sentido mais evidente, é um dos guardiões da memória. Guardamos faces, paisagens, luz. Grandes fotógrafos são mestres em contar histórias completas e reféns de um átimo de tempo; uma só expressão de quem nos ama vale por toda vida a dois. E dos filhos, pais encontram o sorriso primeiro, mesmo quando seus cabelos já estão brancos.

Porém, gostaria hoje de falar um pouco mais dos sons da saudade. Eles podem estar em fragmentos dispersos como o quique reverberante da bola dentro de um ginásio, no assobio do vento que atravessa a fresta da janela, no sino da igreja, no chiado da chaleira, no toque das teclas no batente do acordeão (também no som do instrumento). Dá saudade do barulho que os discos do telefone faziam quando recuavam depois de discarmos um número, do ronco inconfundível de um motor de automóvel, das palmas depois do espetáculo. Saudade do coral de sapos à noite, do latido do cão mais amado, daquele pintassilgo.

Também levarei para sempre na memória, e com muita saudade, a sonoridade da Sala Brown Sugar do Floyd Estúdio. Soube semana passada que este espaço qualificado de ensaio para os músicos de Porto Alegre fechou, e isso partiu meu coração. Não terei mais a rotina de subir as escadas e ser recebido pelo sorriso do John; minhas mãos não passarão mais sobre a pele dos tambores, os cheiros peculiares se vão para os arquivos, adeus café espresso mas, principalmente, nunca mais aquele som. Cada estúdio tem o seu, em nenhuma outra sala sua peculiar combinação de harmônicos. Agora há, em nossas gravações, os sons da saudade. Foi um privilégio, jamais esquecerei.

Crônica publicada no Metro Jornal em 09.01.2018

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