O baile

O baile

Rubem Penz

Existem noites que, assim como gols, merecem uma placa de bronze. Verdadeiras honras ao mérito. Em meus carnavais, tive mais de um momento de exceção que ganharam, na parede da memória, uma plaquinha comemorativa. Nada, porém, comparado com a história que vou contar. Ela aconteceu com uma grande amiga, que chamarei de “amiga” (ou apenas “ela”) para que sua face permaneça misteriosa como a mulher atrás da máscara em Veneza.

Ela, então, estava disposta a investir no plano de passar a noite carnavalesca de gala em um famoso baile carioca. Digamos que seja o baile do Copacabana Palace — exemplo bem emblemático de noite perfeita, assim como o são os camarotes da Sapucaí. Como as fadas madrinhas andam escassas no mercado, a maneira encontrada foi apelar para o infalível jeitinho brasileiro: entrar via porta de serviço. Contando com um amigo influente, que fez todos crerem ser ela uma maquiadora vinda das bandas do sul, ocupou uma das vagas da equipe de produção na última hora para, deste modo, galgar o direito de lá permanecer durante a festa.

O plano estava perfeito e a minha amiga programou-se para instrumentar os verdadeiros maquiadores da noite, alcançando um rímel aqui, um lápis acolá. Ledo engano. Mal chegou na sala de onde sairiam os convidados antes de vestirem suas fantasias, alguém sentou-se à sua frente para receber a maquiagem. Ela sorriu, o rapaz sorriu, os demais ocupantes da sala sorriram. Se houvesse balões como os de revistas em quadrinhos, cada um dos sorrisos estaria dizendo algo diferente. O dela, com certeza, diria “agora ferrou”, ou um termo parecido, mais chulo um pouco. Tremendo como vara verde, procurou ganhar tempo perguntando sobre como era a fantasia dele, o que estava esperando para a noite, coisas assim. Enquanto isso, olhava o trabalho que os outros (e verdadeiros) profissionais desenvolviam, discretamente.

Com o lápis delineador nas mãos, mediu o rosto do convidado na vertical, na horizontal (tipo um grande pintor em busca do ângulo ideal) e pôs as mãos à obra. Mantendo um olho no padre e outro na missa que se rezava ao lado, desenhou, pintou, coloriu e contornou a sua inexperiência com as cores fortíssimas da audácia e da superação. Aplicou muita simpatia e sombra nos olhos. Disfarçou a incapacidade de fazer um traço reto na temática tribal que pedia, por sorte, o motivo da festa. Ao terminar, exausta, a primeira cobaia, percebeu que a noite prometia: um segundo convidado já estava à sua frente, e um terceiro anunciou que desejava ser maquiado pela “gaúcha”. O negócio era não relaxar e, ao mesmo tempo, relaxar. Um samba do crioulo doido.

Quase cinco horas e dez convidados depois, na sua maioria homens (lindos, segundo a protagonista), ela havia conquistado o mais do que legítimo direito de vestir seu exuberante longo e fazer a festa. No entanto, era preciso vencer mais um desafio: seu próprio cansaço! A mão que se tornara firme por obrigação de circunstância, deveria maquiar o próprio rosto com a intenção de disfarçar o esgotamento que a tarefa lhe custou. Naquele momento, o conforto de um travesseiro rivalizava em sedução com o sonhado baile, por mais inacreditável que isso pudesse parecer. Mas havia uma grande vitória para comemorar no salão.

Algum tempo depois de ouvir essa história, cuja riqueza de detalhes mereceria um capítulo inteiro de uma comédia, jamais uma pequena crônica, me dei conta de que muito pouco foi falado sobre o baile em si. Não guardei quais músicas foram executadas e por quem, se amanheceram na praia, se ela se casou na festa. Caso alguma celebridade tenha feito algum vexame ou tomado algum pileque, passou batido. Foram tantas as nossas risadas acompanhando a teatral descrição das peripécias na sala de maquiagem, que a conversa quase dispensou a entrada no salão. A noite mereceu uma placa de eternidade antes mesmo do primeiro acorde da orquestra, em seu tradicional naipe de metais. Um baile cuja improvisada fantasia esteve sob medida para a minha amiga, metaforicamente, não dançar naquele carnaval.

1 comentário em “O baile”

  1. Oi tio mano, aqui é a bebel,
    adorei sua crônica (você já fez 202 cronicas? Caramba…)
    Um beijo de todo pessoal aqui de são paulo, até do mais novo integrante da casa, senhor mico.
    😀

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