Número 284

VÔO DE TAXI

Foram muitas as implicações da entrada em vigor da nova lei brasileira versando sobre a combinação de álcool e direção que, leio agora, aumentará o valor das multas. Por ela ser draconiana, penalizando com severidade o motorista que apresentar o menor traço de alcoolemia, reflexos negativos foram sentidos nas casas noturnas – especialmente em bares e restaurantes. Outros setores, com destaque para os serviços de táxi, desta vez saíram ganhando. Os pronto-atendimentos agradeceram a maior tranqüilidade na madrugada, e isso merece ser comemorado: as vidas poupadas. Porém, na mesma proporção em que os cidadãos ao volante decidiram não beber, quem resolveu deixar o carro em casa se viu autorizado a enfiar o pé na jaca. E isso sempre traz conseqüências.

Táxis costumam andar ao rés-do-chão, se considerarmos assim também os viadutos e elevadas. Entretanto, na medida em que a noite avança, o trânsito se desobstrui e a fiscalização some, alguns voam, mesmo sendo isso apenas uma metáfora autorizada a cruzar sinais vermelhos. Porém, voando ou andando devagar, o certo é que os motoristas têm colhido passageiros cada vez mais altos. Obrigado a deixar o automóvel na garagem, um ou outro apela para o sistema da compensação: uma vez que já estou de castigo, o negócio é transgredir. E tome trago! Beber migra de possibilidade para obrigação. Beber muito, um ato de protesto. Se o whisky era para Vinícius de Moraes “o cão engarrafado”, agora ele passa a ser “o cara-pintada on the rocks”.

A coleta de passageiros que exageraram na bebida está exigindo adaptações aos motoristas de táxi. A primeira, e talvez mais importante, é uma acuidade auditiva que beira a decodificação de mensagens cifradas. Compreender o endereço indicado por alguém que enrola a língua é complicado e exige talento. Piora com nomes bem difíceis de pronunciar até mesmo em estado natural, justamente por não serem em português: Rua Comendador Rheingantz, Rua Zamenhoff, Praça Gustavo Langsch. Isso quando o pobre sabe para onde deseja ir. Exagero? Não, pois eu vivi uma situação dessas dando uma carona certa madrugada – história que prometi jamais transformar em crônica, apesar da extrema tentação.

Outra adaptação é desenvolver uma espécie de talento para a consultoria sentimental. Afinal, não faltarão alcoolizados dispostos a dividir com o motorista as dores do mundo. Taxistas insensíveis e maus conselheiros podem fazer subir as estatísticas de suicídios na cidade. Ou separações de casais, fugas de casa, crimes passionais, parricídios. Não convém atirar gasolina em quem já está de fogo, com o perdão do trocadilho. Por alguns instantes, o tempo exato que durar a corrida, quem está no volante será alçado ao patamar de melhor amigo, confidente, irmão mais velho. Doses equilibradas de paciência, ponderação e distanciamento (para não se tornar cúmplice de uma tragédia) farão parte dos serviços prestados.

Porém, a mais importante adequação que o táxi precisará sofrer com os tempos pós-lei de tolerância zero de álcool e direção, o aproximará definitivamente dos serviços de transporte aéreo. E não terá nada com as metáforas de vôos ou altura como sendo o estado etílico. Sob o risco de perder corridas sucedâneas na noite, saquinhos para vômito precisarão estar em local bem sinalizado e de fácil acesso ao passageiro, a exemplo do que acontece nos aviões. Isso, ou o motorista não terá a resposta correta para quando o passageiro perguntar: “Moço, onde eu coloco a pizza de calabresa?”

3 comentários em “Número 284”

  1. Rubem,sou iniciante na arte de escrever crônicas,porém leio muitos textos.Penso que a tua crônica foi escrita com um humor inteligente.
    Abraço
    Cristina Valle

  2. Muito grato, Cristina!
    Todo cronista adora quando consegue alcançar a simpatia pelo caminho do humor – talvez o texto mais difícil de ser feito.
    Abraços,
    Rubem

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