BONDE CRÔNICA
Rubem Penz
Há uma memorável crônica de Paulo Mendes Campos com o seguinte título: Por que bebemos tanto assim? Fala de bares, é claro, e traz algumas pérolas. “É preciso escolher bem o nosso bar, pois tão desagradável quanto tomar um bonde errado é tomar um bar errado.” Em nove de março, convidei um grupo seleto de escritores para, com eles, tomarmos um bar como quem toma um bonde: tínhamos um ponto de partida, uma trajetória a percorrer e um destino a cumprir. Cabia a mim ser o motorneiro da turma, aquele encarregado de levá-los a tal ponto que escrevessem crônicas para compilarmos em uma antologia. Partia a oficina Santa Sede.
A certa altura do texto, Paulo Mendes Campos cita Baudelaire: “É preciso estar sempre bêbado – de vinho, de poesia, de religião.” Santa Sede! Foram meses embriagados pelo ímpeto criativo. Saber beber guarda um parentesco com saber escrever. Questão de medida, ritmo, sabor, tempo. Também de torpor, ebriedade e delírio. Fui garçom vigilante – jamais deixei que o copo dos oficinandos esvaziasse. Dependendo do tema proposto, vinha a reclamação: a dose de dificuldade estava além da conta… Mas, ao final, todos resistiam bem. Ora ficamos tontos, ora apenas alegrinhos. Nosso trabalho foi muito sério e pouco sóbrio.
“Um bar legal precisa apresentar cinco qualidades fundamentais: boa circulação de ar, bom proprietário, bons garçons, bons fregueses e boa bebida.” Sim, isso é Paulo Mendes Campos. Quando pensei em abrigar a oficina em um botequim, precisava de um bar legal – por isso o Matita Perê. Desejava que a boemia imprimisse nos textos tanto sabor quanto o carvalho à bebida. Nossas qualidades também precisavam ser cinco: boa circulação de ideias, propriedade nos apontamentos, crônicas bem servidas, bons autores e… boa bebida. Juntando tudo, tivemos algumas noites nota dez. Na média, o bar e a oficina nos fizeram passar muito bem.
Em tom professoral, Mendes Campos alerta que “quem vende bebidas deve ser linchado quando exige de seus fregueses comportamento de casa de chá”. Quando a oficina começou, eu sabia que estaria, vez por outra, na selva das opiniões. Desejava isso, no fundo. O ambiente acadêmico e os centros culturais são locais excelentes para abrigar oficinas. Mas a crônica, e a poesia, têm algo de indomável em seu âmago. “A vida ao rés do chão”, conforme diz Antônio Cândido. Lidar com a descontração crônica das bolachas de chope, e nem assim perder a lucidez, estava na mesa. Colarinho branco, só o dos copos. Mas o chá sempre esteve liberado – tolerância plena com as diferenças.