Número 414
Rubem Penz
Setúbal teria sido para sempre de uma só mulher se não fosse por um detalhe sutil: Antonieta pedira divórcio duas semanas antes de completarem bodas de pérola. Segundo ele, assim, do nada. Segundo ela, Santo Deus!, por tudo. Justamente na distância entre estes pontos de vista, mesmo que imprecisos, poderia estar a provável causa do litígio. Ou na abrupta proximidade do casal, depois de ele ser afastado para o Conselho de Administração da empresa.
Agora, morando em um apart-hotel, custava a se adaptar com algumas novas rotinas. Por exemplo, gerir suas próprias necessidades: serviço de café da manhã, arrumadeira, lavanderia, restaurante. Tudo muito bom, mas, segundo Setúbal, sem nenhuma sombra de lar, de cordialidade ou afeto. Em resumo, numa questão de meses, estava sem trabalho e sem família. E muito deprimido.
Antes de vê-lo doente, os amigos resolveram arranjar nova esposa para o Setúbal. Às escondidas, alimentaram um site de relacionamentos com seus dados: peso, altura, idade, cor dos cabelos e dos olhos, preferências musicais e gastronômicas… Essas bobagens que podem indicar o par ideal. Ah, claro, e a situação financeira, seu único sex appel. Por fim, apropriaram-se da aparência da ex para montar o perfil de preferência.
Rodolfo, o mais despachado da turma, foi o responsável pela triagem. Fazia-se passar por Setúbal e marcava encontros com as pretendentes. Depois de umas dezessete tentativas frustradas, e com a turma desconfiando de que Rodolfo estava era tirando proveito da situação, ele anunciou que conhecera a mulher ideal para o solitário amigo. Raquel – seu nome – parecia uma fiel reprodução de Antonieta aos trinta e tantos anos. Tiro certo.
Setúbal, homem de uma única mulher, seria defrontado com uma versão revisada e ampliada de seu amor primeiro. Nos planos da turma, passaria os dias lendo a mesma obra em busca das pretensas atualizações, algumas bastante evidentes, saltando do decote. Teria a oportunidade de voltar às joalherias para reescrever suas observações pessoais em momentos mais brilhantes. Com sorte, em poucos meses, já estaria morando em um apartamento, todo bobo ao acompanhar Raquel escolhendo móveis e artigos de decoração.
À moça, uma única recomendação: jamais comentar nada sobre os dentes do Setúbal, por maior que fosse o estranhamento provocado por eles. Foi agindo assim que Antonieta, a ex, ganhara seu amor e tudo o que o pacote contemplava, incluindo a pensão. Além do mais, sob certo prisma, os dentes eram o único traço distintivo daquele homem de bom coração, mas um tanto convencional.
A aproximação se deu de modo calculadamente fortuito, em um jantar. Tudo estava tão bem articulado, que as primeiras palavras de Setúbal à Raquel foram “Não lhe conheço de algum lugar?”, ainda durante o serviço de canapés. Depois, sentaram-se juntos à mesa e pareciam emendar um assunto no outro, como se estivessem a sós na movimentada recepção. Mal terminaram a sobremesa e Setúbal convidou Raquel para darem uma volta pelo jardim. Diante da cena, os amigos comemoraram a vitória. Antes do tempo.
Naquele instante, ao abrir um sorriso mais largo, Raquel revelou um desconcertante pedaço de alimento entre o canino e o pré-molar. Setúbal percebeu e, sem coragem de falar, começou a passar a língua em seus próprios dentes. Notando que Raquel prestava mais e mais atenção, passou a fazer movimentos amplos, ostensivos, que se transformaram em caretas e, estas, foram acompanhadas de pequenos grunhidos.
No relógio, 11h. Setúbal dispensa o café da manhã. No corredor, dá bom dia para a camareira e sorve o tímido sorriso que recebe de volta.
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