Número 486
Rubem Penz
Está magoada, ofendida, quase em depressão. Dez anos, diz a si mesma. Dez anos! Uma história. Muitas histórias. O começo e seus projetos – sonho de uma longa vida em comum. Entrara de cabeça. Aos poucos, porém, as águas do casamento ficaram revoltas, turvas, e o mergulho deixou de ser assim tão seguro. Busca na solidão do apartamento uma boia, um tempo para retomar o fôlego. Uma direção para onde nadar.
Tesoura nas mãos – terapia – corta minuciosamente aquelas fotos em que aparecem os dois, separando cada parte do casal em montinhos distantes. Natal, Ano Novo, aniversários. Sorrisos fedem a escárnio, abraços parecem estupros, beijos salivavam fel. É preciso segurar a tesoura para evitar a castração. Deseja o poder dos vodus. Quer odiar menos, mas amara demais.
Acomoda-o, caco por caco, num envelope pardo, tamanho A4. Não é novo, está amassado em uma das pontas e começando a puir na dobra. Serve para seus propósitos. Ele não merece mais. Endereça o destino e não informa remetente: é óbvio. Até ele saberá. Na agência de correios mais próxima, carta comum, por favor – não há o que valha registrar.
Dá voltas pelo bairro. Deseja perder-se. Vai ao shopping, entra no cinema, visita a irmã. Quando volta, à noite, encontra o tapete aspirado, as toalhas trocadas, a cama feita e nenhum sinal de si – sumiram suas metades. Na certa a faxineira considerou lixo aquela papelada partida. Passada a ira momentânea, pensa: melhor. Que apenas ele fique com os destroços da relação. Que faça sozinho o rescaldo. Que sofra.
Na madrugada, sonha com suas perdidas fotos e acorda com taquicardia. Confundem-se ficção e realidade – agora escuta o barulhento caminhão do lixo passando ali defronte, fim de qualquer esperança de resgate. Saíra perdendo já nas primeiras horas da separação: ele com paisagens parciais, ela sem nada. Ele, bem ou mal, inteiro. Ela no lixão da cidade. Ele, destinatário nominado. Ela, remetente desconhecido.
A semana custa a passar. Desconfia que será desse jeito para sempre. Demora-se na cama. Tem saudade, teme o futuro. Terminar talvez tivesse sido precipitado demais. Mas, e o orgulho? A faxineira lhe traz um envelope. Branco. Impecável. Quem touxe? Seu marido, ué, que veio aqui quarta-feira passada, também, buscar umas coisas. Abre com pressa. Dentro, apenas um rolo de fita Durex pela metade.
Esta não é crônica, é conto. E desconfio que seja o melhor conto teu que já li. Arrepiei até a cabeça. Grande, Rubem!
Sensacional! Parabéns mais uma vez.
Humberto.
Está supremo! Lindo, o conto. Deu criatividade, suspense e romance ao sentimento de “ódioprecoce”, que é lugar-comum tão visitado por pessoas em crise.
(Olha que audácia: eu apenas ajeitaria o parágrafo em que ela corta as fotos – para deixar claro que cada um dos cônjuges fica numa parte, nos montinhos distantes. Tive que voltar e ler de novo porque minha fúria assassina tinha entendido que ela picara as fotos aleatoriamente).
Grande abraço!
Que beleza, Rubem! Maravilha! O ponto de vista feminino inteiro… Quer dizer, pela metade… Quer dizer inteiro… Enfim… Entende-se! hehehehe Parabéns triplos, sem colar com durex!
Perfeito, ótimo final…
Adorei, do começo ao fim!
Nossa, pessoal, comentários bacanas!
Tati, boa dica – talvez eu tenha deixado a desejar, mesmo. Na revisão, atenderei seu pedido (nada audacioso).
Abraços, Rubem
Sensacional!!!!
Um retrato do que somos e estamos capacitados a fazer. Um dia amor, carinho, semelhança. Noutro queremos distância, esquecimento, ódio.
Teu conto está de emocionar. Ele vem lá de dentro, quase dá pra ver a escuridão e a dor da personagem.
PARABÉNS!!!! Meu grande mestre!
Luciano Fraga