Número 507
Janeiro de idas e vindas
Rubem Penz
Na infância e adolescência vivi a ventura de um exílio voluntário para escapar da ditadura do calor: férias escolares inteiras no Litoral. Meu pai, à época, submetia-se ao torturante calor porto-alegrense como que resignado à nossa sina meridional. E passava os meses que abriam o ano nas idas e vindas, deixando para trás a família no domingo para retornar na sexta-feira com notícias, compras e sorrisos. Tempo em que homens pouco se envolviam no dia a dia dos filhos.
Não me lembro de ter conversado com ele sobre o tema para investigar se havia alguma dose de sacrifício neste hábito migratório, ou se, ao contrário, a combinação de ligar e desligar-se da família trazia bem-estar. O quanto essa administração de saudade em doses homeopáticas não significava auxílio para quebrar a rotina, transformando-se em tratamento preventivo contra a perda de paciência com nossas sempre tão urgentes necessidades. Raras mães em tempo integral conseguiam férias do cargo (isso mudou).
Posso, no máximo, falar por mim. Neste janeiro, deixo os filhos na praia. Deixo-os com a avó de memória doce e seletiva: esqueceu convenientemente de todas as minhas travessuras infantis e contravenções adolescentes. Deixo-os no refúgio histórico de minha família, na companhia de outros descendentes de clãs tradicionais, para viverem suas próprias histórias. E deixo-me refletir sobre como sinto isso tudo num diálogo impossível com meu velho e falecido pai.
Ouso concordar com ele sobre as duas horas de deslocamento não significarem nenhum martírio. Ao contrário, podem bem se transformar em terapia, em momento de reflexão, desde que um bom planejamento de horário faça o carro driblar os congestionamentos. Informo que a saudade para mim dói diferente – homens e mulheres têm, hoje, mais paridade no envolvimento emocional e rotineiro com os filhos, cujo efeito colateral é a sensação de mútuo abandono. Mas tranquilizo-o: isso não chega a comprometer os níveis de testosterona nem abalar a opção de quem é um heterossexual assumido.
Compreendo quando sua evocação me induz a pensar que ele mal lembrava de nós, os filhos. No máximo nos começos de turno, dispensado que estava das caronas ao colégio, dava-se conta de alguma diferença. Especulo que suas noites fossem agradáveis – antes da telefonia ser omnipresente, gozava-se de uma liberdade hoje impensável para sair com os amigos sem dar explicações. Agora, com o telefone no bolso, fazemos a mesma coisa com total transparência. Ou não (escolha, leitor: não fazemos ou não ofertamos transparência). Aliás, a telefonia e outras formas de comunicação diminuíram a distância entre quem fica e quem vai.
De tudo o que assemelha ou diferencia o passado e o presente, uma constante garanto que há: o calor. O restante do Brasil e do mundo guarda mais forte na memória as cenas sulinas em que vestimos pesados casacos, mantas, chapéus e, quando pilchados, palas e botas. Porém, são poucas as regiões com um calor tão opressor. Por isso famílias se refugiam no Litoral. Por isso homens (e mulheres) administram a saudade. Por isso, lotamos os bares – ninguém é de ferro.