Rufar dos Tambores nº 515
O Pedestre e o Monstro
Rubem Penz
O enredo dessa história é semelhante ao “O Médico e o Monstro”, mas não acontece na Londres do século 19, e sim no Brasil do século 21. Um rapaz chamado Sereno entra na autoescola para fazer sua carteira de motorista. Passara a vida até então como pedestre e, sendo assim, conhecia a opressão que o mais frágil pode sofrer nas ruas. Durante as aulas teóricas aprende tudo sobre legislação e, com muito empenho, cumpre suas horas de prática. Teste feito, Sereno finalmente é um motorista habilitado.
Carteira no bolso e volante nas mãos, o jovem Sereno sofre uma estranha mutação, transformando-se no terrível Raivoso, um verdadeiro monstro. A primeira mudança ocorre em sua visão: fica cego para as placas indicativas de velocidade máxima na via. As faixas de pedestres, outrora tão valiosas, simplesmente desaparecem. É como se os espelhos retrovisores jamais refletissem sua antiga condição. Carro na garagem, ele volta a ser o doce rapaz de sempre.
Com o passar do tempo, a maldição de ter dupla personalidade não apenas persiste como também se agrava: Sereno, quando transformado no terrível Raivoso, ganha confiança e habilidade. Também compra um carro melhor, potente e veloz. Agora, as noções de prudência são totalmente ignoradas com a adição maligna de cerveja. Raivoso bate ponto em postos de gasolina e, nas madrugadas, participa de rachas com outros monstros. Nem mesmo a morte de conhecidos ou os apelos da mãe o dissuadem desta estranha forma de suicídio.
Sereno e seu alterego, o Raivoso, perdem a desculpa dos arroubos juvenis ou da natural necessidade de autoafirmação. Nem assim Sereno livra-se do monstro que o transfigura dentro do carro: está cada vez mais egoísta e imprudente. Circula pelo acostamento, cruza o sinal vermelho – amarelo, nem se fala! –, faz conversões proibidas se elas lhe convierem e tranca os cruzamentos. Mas não permite que ninguém contrarie as regras na sua frente: calca a mão na buzina. Raivoso encara o trânsito como um videogame, uma batalha. Fortes contra fracos.
O fim da história pode variar: o maligno Raivoso pode se matar (e ao doce Sereno) em uma ultrapassagem perigosa. Pode levar inúmeras multas, ferir pessoas, causar prejuízos. O começo, porém, é sempre o mesmo – inocente pedestre permite que seu lado sombrio tome conta das ações quando ocupa o volante de um automóvel. O “monstro” habita dentro de nós. Dorme atrás dos vidros escurecidos. Espreita.
E agora: será isso ficção ou realidade?
Eu trocaria a pergunta final para “Como mudar essa triste realidade?”