Crônica publicada no Metro Jornal em 18.02.14
Eu conheço, você conhece, todos conhecemos pessoas absolutamente incapazes de fazer sacrifícios. Aqueles que não aceitam isso ou aquilo quando aquilo ou isso, de alguma forma, virá em seu prejuízo. São os que não recuam a vez ou a voz; os que nunca renunciam de seus privilégios; os que dificilmente se conformam com desvantagens (independentemente da eventual justiça) e, agindo dessa forma, constrangem os demais a cederem o tempo inteiro. “Se eu não pensar em mim, quem pensará?” é o lema. Sim: tais pessoas medem os outros por sua régua, descrendo que alguém em sã consciência pensará no outro antes de pensar em si. Fico apenas em dúvida se gente assim deveria ou não se reproduzir.
Uma parte de mim acredita que um filhote humano, sangue do seu sangue, vindo ao mundo com fragilidade absoluta e surpreendente força vital, tem o condão para chacoalhar a escala de valores dos pais. Então, alguém incapaz de fazer sacrifícios olha para o recém-nascido e pensa: preciso fazer por ele tudo o que estiver ao meu alcance. Imbuído, começa a abrir mão. Sacrifica o conforto, o sono, o tempo livre. Sacrifica boa parte dos sonhos ou, melhor dizendo, substitui sonhos egoístas por outros compartilhados. Sacrifica os projetos que não contemplam o filho. Também, para que o cônjuge não sacrifique todos os sonhos ou projetos, sacrifica-se por dois. E, melhor: tudo de bom grado.
Outra parte pensa o contrário: há no mercado inúmeros métodos anticoncepcionais seguros e acessíveis, e filhos para os que são incapazes de fazer sacrifícios devem ser evitados a todo custo. Primeiro, porque um nenê colocará a outra parte do casal em sofrimento constante – jamais haverá contrapartida ou compensação se a carga ficar no ombro de um só. Depois, crendo que os incapazes de fazer sacrifícios ao serem defrontados com a impossibilidade de seguir o padrão de conduta, culparão o filho pela imolação. Na primeira oportunidade (e na segunda, terceira, quarta…) acusarão a criança (o jovem, o adulto) de ser responsável por sua infelicidade. Desta maneira, pensando na saúde dos que estão em volta, a esterilidade viria como bênção.
Mas não adianta nada ficar teorizando. A Natureza fala alto e a compulsão reprodutiva fará com que o incapaz de fazer sacrifícios tenha filhos. Pensando pelo lado bom, receberá a oportunidade de aprender a ceder, evoluindo como gente. Com sorte, descobrirá o prazer incomensurável da doação pessoal. Na pior das hipóteses, passará pela chuva sem se molhar. Ou, pior ainda: ensinará pelo exemplo seus filhos a serem pessoas incapazes de fazer sacrifícios, perpetuando a espécie.