A apulheta, seu tempo e nossa vida

Crônica publicada no Metro Jornal em 18.03.2014

São muitas as maneiras engendradas pelo homem para contar o tempo. A mais antiga creio ser o relógio do sol. Depois, o homem usou a água para suas medidas. Muito antiga, também, é a utilização da areia. Os mecanismos foram se sofisticando com o passar dos séculos até os dias de hoje, nos quais quase tudo embute um relógio – da geladeira ao computador, do telefone ao automóvel.

De todas as formas, uma delas – a ampulheta – chama a atenção pela perfeição em significar, além do tempo, a vida. Ao nascermos, nossa ampulheta particular é virada. Ali, acima, o futuro. Acolá, abaixo, o passado. E o presente? O presente é o pequeno, estreito, ínfimo gargalo que permite o escoar ininterrupto da areia. A vida nada mais é do que isso: um suspiro entre passado e futuro. Um átimo. Um escorrer constante enquanto houver tempo, transformado a cada instante presente em história. Um movimento/momento.

Tal formato deveria deixar-nos mais preocupados: não temos todo o tempo do mundo para viver. O que temos é um fio de tempo e, ali, precisamos construir o legado. O presente, única parte do tempo em que nosso livre arbítrio tem chance de ser exercido em plenitude, transcorre em segundos e parte para fora do nosso controle. Ignorantes que somos sobre o quanto de areia resta na parte de cima da ampulheta (a destinada para acomodar o futuro), podemos estar a cada dia vivendo o fim do tempo sem que se possa fazer algo para mudar o destino. Aliás, para retirar tudo dos desígnios, há de se ter cuidado para jamais provocar a própria morte, boicotando um tanto de futuro que parecia óbvio.

Dias atrás fui alertado para essa precariedade do tempo presente, o qual aponto como o gargalo da ampulheta, por uma pessoa muito sábia. O mais interessante é que ela desenvolveu este estado de atenção exatamente por trabalhar diante do grande, ainda que dissimulado, vilão devorador do nosso tempo: a burocracia. O Estado brasileiro deveria ser julgado em alguma corte internacional por ser o maior assassino da História. O que o faz com as pessoas físicas e jurídicas (e, nas jurídicas, outra vez com as físicas) é impor procedimentos, exigências e entraves que ocupam o tempo do cidadão apenas para saciar um apetite torpe. Minha amiga é sua vítima contumaz por dever de ofício, e acaba dando muito valor ao tempo livre. Mas a burocracia faz ceifar tempo (vida) de todos.

Para finalizar (na crônica, espaço é tempo), só resta saber se escrevi isso para mim, para dar-me conta do que faço com o presente; para o leitor, no desejo de que esteja igualmente alerta; ou para quem decide algo neste país cartorial – aquele do outro lado do balcão e que está ocupando o fiozinho de areia de quem poderia usá-lo para algo nobre, feliz ou útil. Ou ainda apenas em gratidão à querida M.

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