Rubem Penz
Como eu vivi e tudo o que aconteceu comigo foi permeado, de alguma forma, pelas canções de Belchior, compositor cearense falecido neste domingo. Por dois motivos, um nada trivial e outro bem prosaico, ele está para o Brasil como Bob Dylan está para os Estados Unidos. O motivo nobre recai sobre a imensa qualidade de sua obra; o modo tão belo, cortante e melancólico como foi capaz de cantar sua geração. A banalidade na comparação pode ser percebida na coincidência dos timbres estranhos destes dois poetas maravilhosos: ambos têm vozes quase incômodas, o que potencializa a assinatura inconfundível contida no som.
Muitas das suas músicas serviram de trilha sonora em minha vida. Cito Paralelas, que me leva a ouvir Vanusa no auge de sua interpretação; A palo seco, Apenas um rapaz latino-americano, Alucinação, Pequena comédia humana (aquela em que um analista amigo diz com que jeito se pode ser feliz “direito” e Olavo Bilac ganha versão remix). Porém, nenhuma de suas canções faz mais efeito sobre mim do que Como nossos pais. Um efeito imediato, continuado e indelével; forte em minha meninice e ainda mais impactante na madureza.
Só quando escutei Elis rasgar pela primeira vez “nossos ídolos ainda são os mesmos /e as aparências, as aparências não enganam, não / você diz que depois deles / não apareceu mais ninguém” e “é você que ama o passado e que não vê / que o novo sempre vem”, pude compreender que meus pais também foram jovens; também transformaram os costumes; também entraram em conflito com o status quo e, em alguma medida, sedimentaram-se na tradição – a qual coube a mim desafiar. Quem hoje fecha o sinal para os jovens (eu?), ontem avançou o sinal vermelho e, amanhã, queira ou não, verá os filhos a cumprir novo ciclo.
Outro fragmento quase profético desta canção diz: “E hoje eu sei que quem me deu a ideia / de uma nova consciência e juventude / está em casa guardado por Deus / contando os seus metais”. Olha, na parede da minha memória este, sim, é o quadro que dói mais… Nunca cheguei a ser dos mais fanáticos pela utopia hippie da “sociedade alternativa”, mas apostei todas as fichas na volta da democracia como instrumento de transformação, algo capaz de atenuar a desigualdade social. Ver essa geração tão corrompida como está evidente nas manchetes e nos processos judiciais é algo que cospe em mim. Dilacera. Humilha. Na versão de Elis para a música ela canta, se não me falha a memória, “vil metal”. A vilania do dinheiro, creio eu, está dividida com paridade entre os que ofertam e os que aceitam suborno.
Diferente de tudo o que ouvi, Como nossos pais de Belchior enuncia uma rara contrição. A todos denuncia; a ninguém perdoa. RIP.
Crônica publicada no Metro Jornal em 02.05.2017