Cartão-postal dilacerado

Rubem Penz

Martins, meu barbeiro, atende na Gen. Andrade Neves, Centro Histórico de Porto Alegre. Essa rua fica no pé da antiga Ladeira, uma quadra acima da Rua da Praia e da Praça da Alfândega; pouco abaixo da Praça da Matriz – onde estão o Palácio Piratini, a Assembleia Legislativa, o Palácio da Justiça, a Catedral Metropolitana e o Theatro São Pedro, entre outros prédios históricos. Se puser um alfinete localizando o salão no mapa e marcá-lo como o meio de um círculo com raio de 700 metros, ali estará um pedaço significativo da capital gaúcha, com museus, centros culturais e logradouros relevantes.

Para cortar o cabelo, e como gosto de caminhar, todo mês deixo o carro distante e percorro a Av. Borges de Medeiros, passando por baixo do Viaduto Otávio Rocha – marco arquitetônico e urbanístico da cidade, além de ser um dos seus mais belos cartões-postais. Compõe destaque neste meu perímetro imaginário, mas é, disparado, a chaga mais purulenta de nossa memória. Degradado, pichado, fétido e abrigo de mendigos, é um acinte a céu aberto. Pior: contrapõe visões ideológicas quando deveria ser uma óbvia unanimidade. Ou seja, sempre que o município retira os moradores de rua e limpa a área, há quem denuncie isso como violência.

Higiene e conservação de patrimônio público precisariam obrigatoriamente compor agenda consensual. Segurança, também. Sim, o Martins me disse que mulheres e idosos estão evitando as escadarias e os arcos do viaduto por causa dos ataques sofridos num monumento que, em qualquer lugar do mundo, receberia população e turistas com qualidade. Estou falando de mulheres e idosos porque crianças desacompanhadas, grupo ainda mais vulnerável, nem mais se admite – nos anos 1970 eu frequentava o Centro, sozinho, aos 12. Restaurar o entorno não é maquiagem, é recomposição de cidadania. E urgente!

“E os miseráveis, você não se importa com miseráveis?” Pergunta pertinente, a qual respondo com outra: deixar que habitem o local em condições degradantes significa se importar com eles? Mesmo? Nunca vi, aqui ou no estrangeiro, qualquer programa social que se proponha a solucionar a pobreza transformando monumentos e obras de arte em moradia clandestina (quem sabe por isso ser má ideia…). Consenso 1: limpar, pintar e iluminar o viaduto Otávio Rocha; retirar dali para sempre os acampamentos mendigos não resolve o flagelo social. Consenso 2: eu seria o primeiro a denunciar isso, caso o contrário dessas iniciativas resolvesse. Você está comigo?

Crônica publicada no Metro Jornal em 03.10.2017

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