O fim da inocência

O fim da inocência

Rubem Penz

Oi, tum, tum, bate coração
Oi, tum, coração pode bater
Oi, tum, tum, tum, bate, coração
Que eu morro de amor com muito prazer

Cecéu

Confesso ter levado um choque. Esperava por tudo – os pedidos de exames (muitos exames), a reprimenda por ter relaxado na rotina de caminhadas, um certo espanto por eu confessar beber uma cervejinha diariamente, a constatação de que a pressão arterial está magnificamente em 11X7… A nova cardiologista que estará encarregada de vigiar minhas pulsações cumpriu sístole por sístole as expectativas. Até que li a requisição do ecocardiograma Doppler a cores e, nela, depois da informação do meu velho amigo do peito, um ponto de interrogação. Bem assim:

Sopro inocente?

Passei a vida inteira convicto de que meu sopro cardíaco era inocente. Vida inteira mesmo: sei ter cardiologista no rol de médicos desde que nasci. E ele sempre atestou sua inocência. Quer dizer, uma vez colocou em dúvida. Mas foi porque pedi – assombrava-me o Serviço Militar Obrigatório e perguntei se poderia ter se agravado um pouquinhozinho. Só o suficiente para nascer uma pulga atrás das divisas do responsável pela dispensa em excesso de contingente. Deu certo. E, desconfio, as Forças Armadas saíram ganhando com o fato.

Aí a tragédia pessoal: havia um sopro de inocência em meu peito.

Depois disso, e já se vão muitas décadas, estava claro ser o sopro até mais inocente do que eu. Afinal, além do acima exposto, mais ou menos na mesma época passei também a sofrer dos males do amor, algo que maltrata o coração amiúde e destrói ingênuas ilusões. Posso ser próximo de um santo e, ainda assim, ter perdido a inocência quase por completo. Aí a tragédia pessoal: havia um sopro de inocência em meu peito. Maldito ponto de interrogação!

Ok. Sem drama. Sofro antecipadamente. Devo esperar sem taquicardias pelo julgamento. Digo melhor, pelo diagnóstico. Daqui até lá, preciso conviver com o peso da desconfiança. Com um suspeito em meu peito. Diante da médica, afiancei sua inocência. E se houve uma esclerose? – ela me perguntou. Não soube o que responder. No tum-tac da expectativa, espero não ser traído. Não por você, coração. Por favor.

6 comentários em “O fim da inocência”

  1. Soraia Schmidt

    Quem não conhece mas gosta, vá. De crônica e de compartilhar. Vale a pena. O Rubem soma. Não diminui. Às vezes divide, mas o resultado final sempre é de acréscimo.

      1. Clarice Maria J Ribeiro

        Um escritor como tu, entre a palavra inocência e o ponto de interrogação existe um vasto território de vida! Entrelinha pura!

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