Se existe algo no mundo para ser tão particular e único quanto uma impressão digital, creio que é o gatilho emocional. O modo como uma paisagem, um cheiro, um som, um sabor, uma textura, uma memória ou uma impressão bate numa pessoa sempre será único. Numa mesma família, entre irmãos, os gatilhos serão diferentes. Em um casal, então, partindo do pressuposto que se conheceram na idade adulta, haverá um universo de emoções a serem disparadas em um sem que o outro tenha a menor noção de intensidade. Entre pais e filhos, amigos, colegas… Nada se iguala.
Pensava nisso durante a mais recente estada na Praia do Barco. Minha mãe mantém nossa casa por seus motivos e, entre nós, os filhos, estarmos lá corresponde em muito às razões familiares que percutem o coração da dona Isolde. Porém, enquanto passamos lá os dias de verão, sejam dois, doze ou vinte e dois, cada um de nós terá seus gatilhos emocionais particulares – quase todos vinculados às vivências de infância e juventude.
Tudo naquele lugar esquecido pelo desenvolvimento me encanta. Esta mesma totalidade será absolutamente incompreendida por quem não tenha as raízes enterradas fundo no solo arenoso sobre o qual meus pés palmilharam dias e noites. Posso não encontrar os antigos companheiros de verão e, nem assim, quase como fantasmas, eles deixarão de estar ao meu lado. As casas não são mais as mesmas e, ainda assim, os chalés de madeira com telhado de barro permanecem na paisagem. Os salva vidas têm idade para serem netos do saudoso Santino e não importa: será ele que zelará por minhas braçadas.
Um sol particular nasce naquele pedaço do mundo e, ao entardecer, é aquela serra que desenha meu cansaço.
Como pode um lugar já desfigurado ser tão permanente?
Como podem as ausências de tantos anos serem tão presentes?
Como pode o mar ser igual tantas e tantas ondas depois?
A única explicação que me surge é o desejo de jamais esquecer meu período de formação. Mesmo que tenha sido na cidade o maior tempo de minha vida, a nudez de corpo e alma experimentada na praia deixa tudo mais perceptível. É quase como se o café preto daquela água salobra fosse o único a ser o verdadeiro sabor de café. É assim como se aquelas ondas percutindo em meu peito representassem o oceano inteiro. É ser o calçamento daquelas ruas o único que sabe o peso do meu corpo e o ritmo de minhas passadas. Um sol particular nasce naquele pedaço do mundo e, ao entardecer, é aquela serra que desenha meu cansaço.
Se você andar comigo na Praia do Barco e notar que meu olhar se perdeu, não se preocupe. Estou bem ali e, talvez, bem longe. Cada um dos meus sentidos estará sofrendo a impressão de centenas, milhares de gatilhos emocionais. Posso transitar entre a melancolia e o êxtase de um segundo para o outro. Você poderá sentir algo parecido em outro lugar, talvez muito mais nobre ou luxuoso. Isso é ótimo, ainda que irrelevante. Assim como impressões as digitais, as emoções jamais serão valoradas para mais ou para menos, ou serão mais ou menos importantes. Estarão ali apenas para nos diferenciar. Qualquer um pode recorrer à memória para saber de si ou escolher não lembrar. Agora, quero ver fugir dos gatilhos enquanto cruza um campo minado.
O cheiro forte que exalava da chaminé da Maria fumaça, marca minhas lembranças. Seu andar lento e ritmado, marcado pelo ruído daquela máquina avançando entre campos rumo à Praia do Cassino, trazem num bailado sublime minha lembrança dos postes e mourões de cerca desfilando diante de meus olhos de menina. São marcadores sublimes.
Que lembrança linda, Isiara! Nossa, muito linda!
Obrigado por comentar!
Não tenho nem palavras pra descrever tamanha poesia neste texto! Bravo 👏 escritor!
Ângela, querida, muito obrigado! Você é muito importante em minha vida literária. Serei sempre devedor! Beijos!
Eu sou uma multidão de gatilhos. Tenho gatilhos até de lugares que não existem e, também, dos que nunca lá estive… déjà vu.
Boa, Jorge: gatilhos de lugares sonhados também valem! Abraços
Rubem, falas de forma tocante sobre tua relação com o lugar; ele desperta em ti sensações pretéritas, mas sempre e sempre presentes. Senti decerto teu sentimento (não por isso, mas em tempos muito distantes, tenha amiúde ido de bicicleta, desde Capão, pescar nos arredores da praia do Barco), como sei do sentimento relatado!
Caríssimo professor,
Escolher os lados da Praia do Barco como destino de pescaria ciclística partindo de Capão da Canoa comprova o grande conhecimento de física: lutar com o nordestão na ida e, na volta, ser ajudado por ele! 🙂 Muito obrigado pelo comentário, abraços!
TEORIA PUTIN-QUE-PÁR…
Hans Castorp sobreviveu à última página de A Montanha Mágica (de Thomas Mann). Era a primeira guerra. Minhas chances são maiores.
😮
Gostei muito. Eu não tenho me animado a escrever, mesmo tendo feito o teu curso. Mas um texto sobre estás emoções da minha cidade de Canela cheguei a rabiscar. Vou te mandar para avaliares.
Obrigado, Neusa!
Quando deixamos a emoção falar, quase sempre falamos com os sentimentos particulares do leitor.
Abração, Rubem