O analista de bege

Na primeira sessão de análise eu havia reparado que o analista vestia-se de bege. Era bege dos pés à cabeça (do sapatênis ao cabelo castanho-claro). Nem os aros dos óculos ou a capa do bloco de anotações escapava do monótono tom – cujo papel, óbvio, era pólen. E o estranhamento seguiu por tempo suficiente para desaparecer o suéter de tricô bege e aparecerem as camisetas de gola polo bege.

Bege também era o tom de sua voz. Alguma coisa entre a doçura e a falta de sal; entre o sussurro e o silêncio. Enquanto falava begemente, o gestual de sua mão direita (a da caneta dourado-fosca) demonstrava uma contenção aparentemente estudada para ser suave e pausada – movimentos em espiral horizontalizados, sempre no sentido horário.

Tudo na sala cheirava a alfazema. Porém, o lilás da lavanda não aparecia – o que se fazia sentir era o aroma meio bege desta planta. A água da jarra de cristal nunca estava gelada, nem mesmo no verão. Temperatura ambiente controlada por um ar-condicionado marcava indefiníveis 23 graus, ou seja, nem frio, nem quente. Diáfanas cortinas em tom palha adormeciam o sol da janela.

Naquilo que tinha de móveis – e eram poucos – toda madeira era em marfim. Os estofamentos compunham em veludo claro e o tapete parecia algo como juta. Abajures com pantalhas em palha trançada. Luzes sempre quentes (ou seja, amareladas) e suaves. Uma bossa nova instrumental em volume quase inaudível brotava de algum canto, ou de todos – era difícil dizer.

Devo completar o quadro: sorriso amistoso com dentes alinhados, olhar de interesse genuíno, n-e-n-h-u-m fio de barba, cabelos aparados nas laterais, mais longos no alto sempre e penteados, unhas pintadas com esmalte incolor, porte de mordomo de filmes dos anos 1940, cílios longos e sobrancelhas discretas, queixo partido, discretíssimo pomo de adão, último botão sempre fechado, meias amarelinhas, relógio de ponteiros e pulseira de couro, aliança discreta na mão esquerda…

Foram três anos em que eu dizia barbaridades, agitava os braços, sentava-me e me erguia em rompantes, batia palmas diante do rosto dele (ele piscava, claro, mas nada mais), ameaçava colocar fogo nas vestes, gargalhava, chorava copiosamente, dizia palavrões, cantava e dançava, sumia para debaixo do divã, socava almofadas, mordia almofadas, jogava almofadas para cima e contra a parede, mentia sobre meus sentimentos… Três anos aparentemente em vão.

Até que num dia, com alguma esperança numa antevéspera de Ano Novo, eu vi: um fio de baba escapou-lhe no canto da boca.

4 comentários em “O analista de bege”

gostou? comente!

Rolar para cima