Escada para o céu*

Se me for permitido subir ao céu, em ocasião da minha morte, já posso escolher o caminho para fazê-lo: a escada do sobrado da minha avó na Praia do Barco. E não será por sua altura, já que não chegam a duas dezenas de degraus; tampouco pelo luxo, pois é feita de madeira e de arquitetura singela. Na verdade, será pelo fato de ser a principal escada que existe no paraíso (ao menos o paraíso eleito em minha infância).

Quando algum dezembro dos anos sessenta apontava, eu começava a sonhar com a Vila Morena, um sobrado de madeira avarandado e assim batizado em homenagem à sua proprietária. Localizado no centro da praia, no tempo que lá existiam menos de trinta casas, era visto à distância, pelo seu telhado proeminente e de cor vermelha forte. O contraste com o ambiente urbano onde morávamos durante o ano era enorme: não tinha luz elétrica, telefone ou água encanada; o sótão era habitado por morcegos e gambás e o porão por escorpiões e pequenas cobras; a profusão de terrenos baldios acomodava toda sorte de vizinhos, como gado solto durante o dia e muitos sapos coaxando à noite (aliás, único som noturno que sucedia o gerador à Diesel do Hotel Vendaval, que era desligado perto da meia-noite).

Junto da parede norte da sala, em oposição à porta de entrada, ficava a escada que permitia acesso aos quartos de cima. Apoiava-se numa dispensa de gêneros alimentícios e material de consumo, caprichosamente disfarçada por uma estante/porta adornada por divertidos canecos de chope. Em sua base, também, estava o alçapão do porão, onde repousavam no chão de areia fina as garrafas vazias, iluminadas pela luz trêmula que atravessava a base do sobrado, feita de tijolos desencontrados. A escada chegava no “quarto do meio”, um misto de peça e corredor, com duas camas, um baú, um armário e portas para os quartos da frente, do fundo e para o telhado.

No lado esquerdo dos degraus, abaixo do corrimão, quem estava em casa colocava os chinelos. O número de pessoas variava muito, principalmente entre dias de semanas e sábados e domingos. Para um bom observador, bastava analisar estes calçados para saber se alguém partira ou estava de volta. Se, nas peraltices de criança pequena, derrubássemos os pares, era exigido que tudo voltasse ao lugar, mesmo que sem obedecer à ordem original. Passavam-se os dois meses de veraneio e, ora sim, ora não, repousavam havaianas, alpargatas, chinelos de couro, tamancos… Uma verdadeira sapataria escada acima, variada em gênero e número.

Pois, se ao morrer me for de direito ir ao paraíso, é meu desejo voltar a ser aquela criança que subia para dormir na Vila Morena. E encontrar na escada os chinelos da minha avó, que já está lá em cima, e de todos que partiram antes de mim. Então, como rito final, despir os pés e ocupar meu degrau nessa história.

*Esta é a primeira crônica que escrevi na vida, em 1999. À época ela venceu um concurso literário de âmbito nacional e, ainda hoje, continua a ser uma das mais lembradas pelos leitores. Aqui, uma publicação comemorativa.

16 comentários em “Escada para o céu*”

  1. Magaly Andriotti Fernandes

    Sempre instigante te ler. Esse lugar da avó nós nossos corações e universal. Uma casa na praia e de férias que lembranças maravilhosas. Não as tenho mas viajar contigo foi um prazer. Parabéns

    1. Magaly, muito obrigado! Certamente tens outras lembranças igualmente maravilhosas de infância, histórias emocionantes. Abraços, Rubem

  2. Luiz Carlos Falkenbach Pacheco

    Mano (Rubem) sobrinho querido,tenho práticamente quase a mesma memória desta casa uma vez que meu 1º veraneio na Praia do Barco foi quando recém tinha começado a namorar tua tia Maria em 1965 com vocês os primogênitos ainda pequenos. Não tem como não ficar emocionado ao ler e passar o filme na tua cabeça desta história maravilhosa. Parabéns e obrigado!!!

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