O futuro depois da esquina

Muitos são os relatos de pessoas com sonhos repetidos. Uma espécie de soluço do cérebro – voltam sem que se possa compreender, controlar ou interromper. Param quando querem e, por motivos insondáveis, retornam sem que nada possa ser feito. Quando são pesadelos, tudo fica pior: uma angústia que pode até afetar a vontade de dormir. Minha série repetida não deixa de ser curiosa: estou dirigindo por ruas que nunca andei, por cidades que desconheço.

A querida amiga Myrthes tem um diário de sonhos. Ela nos ensinou que só existe uma maneira de guardá-los na memória a ponto de escrever seus enredos: ao despertar, voltar aos sonhos com a razão. Pensar neles, mapeá-los, investigar alguma lógica ou motivo para lugares e personagens estarem presentes. Reviver os sonhos antes de levantar da cama. Ela, que tem o diário, antes de perder o fio, registra as palavras no papel. Alguns de seus sonhos viram ótimas crônicas.

Foi um tal de desce de viaduto, entra em perimetral, troca de pista, lê indicações e placas e flechas pintadas nas pistas que me deixa exausto só de lembrar.

Meus devaneios são prodigiosos em misturar pessoas que sequer se conhecem com paisagens do passado e do presente em situações cujo nonsense surpreenderia Salvador Dalí. Se fizer um balanço para averiguar qual personagem mais se repete, com certeza será meu falecido pai – quando vejo, ele está no sonho ao menos como um coadjuvante de luxo. Se um filme ou série causa muito impacto, contamina a história, misturando-se às minhas memórias. Estou esperando o dia (a noite?) em que sonharei algum enredo plausível.

Ontem (o ontem deste texto, é claro) aconteceu outra vez: dirigi por ruas e avenidas estranhas, incomodado pelo risco de me perder. Foi um tal de desce de viaduto, entra em perimetral, troca de pista, lê indicações e placas e flechas pintadas nas pistas que me deixa exausto só de lembrar. Muitas de suas cópias passadas foram mais tranquilas – eu parecia saber para onde ir, ainda que fosse uma nova cidade. Desconfio que períodos nos quais muitas decisões podem levar para endereços sombrios afetam a relação do sonhante com o deslocamento.

Eis a mais nova racionalização dos meus sonhos repetidos: estou menos ou mais confiante na condução do carro pela paisagem desconhecida em função do agravamento dos meus temores com o presente e com o futuro. Uma metáfora, só pode ser isso. Confirmando-se, só não tenho pressa de estacionar.

17 comentários em “O futuro depois da esquina”

  1. Zulmara Fortes

    Em matéria de sonhos esdrúxulos acho que poucos me ganham. Vou começar a anotar antes de sair da cama; podem render crônicas igualmente esdrúxulas.

    1. Olá Rubem. Que bela crônica! Isto me leva a sentir a velha ansiedade por viver em um mundo que cada vez me é mais desconhecido, e por vezes, insano. Mas aí vou ter que escrever também, mas não quero. Freud explicaria! Sou tua fã, tu sabe. Abraço.

  2. jussara nunes ortiz

    Também sempre sonho que estou dirigindo, vou acelerando e na hora que busco o freio cadê
    ele? Acordo sobressaltado.

  3. ROTA DO BARRANCO FOFO
    Assim como acontece a cada novo inverno, encerrado o prazo do IRPF, declara-se aberta a ‘minha’ temporada de montanhas com amigos do PR. Quem conhece SC, Estado onde vivo, sabe que aqui temos trilhas de duas horas, as mais próximas de mim a citar: Morro do Boi, Morro da Igreja, Rota das Cachoeiras, Monte Crista, Pico Jurapê e acabou. Por isso aceito os convites que surgem pra adiante.
    Quero contar de uma trilha simples, relativamente curta, dificuldade leve a moderada, escolhida para sábado passado, vinte de junho: o Morro do Canal, em Piraquara/PR. Começamos a caminhar às 14h22. O tempo de subida é de 1h30, moleza pra quem tinha visitado o Pico Paraná em maio. Chegamos no topo às 15h52, pretendíamos aguardar o pôr do sol, agendado pra mais tarde.
    Pra muito mais tarde, diga-se de passagem, então cheguei a pensar que era broma do amigo E., que ia nos enganar bonito, com hora de folga nos guiar até a Torre Amarela – desce morro, sobe morro, mais meia horinha e chegou. Não era broma. Um dos parceiros está se recuperando de uma cirurgia, a Sofia é novata, o descanso era proposital. Esperamos o sol se esconder.
    Levei duas lanternas de cabeça, uma para mim, outra para filha, uma das duas falhou. Vazamento de pilha, sem pilha sobressalente. Estou acostumada a caminhar no escuro, então tudo bem. O amigo H. ofereceu a lanterna de mão, extra que levou, recusei. Desci seguindo os passos da Sofia, logo atrás dela. Quando o obstáculo era maior – pedras altas, troncos, grampos, cordas – ela iluminava pra mim e tudo caminhava bem… De repente as duas mulheres que estavam mais à frente pararam, um mísero instante, ela parou, eu parei. Meus dois pés estavam juntos, pisando em superfície plana, quando, do nada, o chão sobre meu pé direito cedeu, o pé desceu, a perna direita foi junto, arrastou meu corpo barranco abaixo, duas alturas de mim, cedeu mais um pouco, outras duas alturas abaixo, até que a terra parou.
    Não tive medo. Deslizei como dublê bem treinado, escorregando sobre terra fofa. Estava bem agasalhada, saí sem arranhão. O cotovelo direito ganhou hematoma do tamanho de uma digital, constatei depois. O pessoal iluminou a barroca, eu tentei contornar a trilha, achar outra saída, não tinha, subi pelo deslizamento agarrando raízes expostas. Continuamos.
    Foi tamanha a solte! Qualquer outro buraco em que eu tivesse caído, fosse para o lado esquerdo de quem desce, direito de quem sobe, teria topado com empilhamentos de pedras lavadas pelo córrego que se forma com a chuva. Podia ter quebrado costelas, pernas, braços, o queixo lindo. As pessoas pensam que isso não acontece, mas foi justo o que aconteceu com o amigo D. certa vez. Trilhávamos o Monte Crista. Outros desmarcaram, fomos somente os dois.
    Ele escorregou na trilha, na volta, há uns vinte minutos partindo do topo. A bunda já tinha se assentado, os pés continuavam indo embora. A canela esquerda decidiu tentar frenar o peso do corpo de um metro e oitenta, mais a mochila cargueira. Bateu contra uma pedra em forma de disco, cravada no barranco, o disco pra fora. Foram cinco horas até o socorro, oito pinos de sustentação, meses de fisioterapia.
    De minha vez, sou menor, a mochila vinha vazia, meu barranco era terra fofa, sujei mal a legue e a jaqueta azul batida, não foi grave. Saímos cedo, eu e a filha, de São Bento do Sul/SC, pretendendo estar próximo do local com hora de antecedência. Deveríamos localizar a Chácara Dona Helena, almoçar por lá. Escolhi ir por Agudos do Sul, passar por Tijucas – tem menos trânsito, a Sofia dirigia, recém habilitada. Entramos pela avenida principal, sem atentar pra indicação do GPS de pegar à esquerda na primeira quadra depois da rotatória. Ela não reduziu pra conseguir dobrar na próxima quadra então seguimos até o final da avenida e enfim à esquerda, curva acentuada uns noventa graus. Caímos na mesma rodovia, sem nem perceber. Indo adiante os próximos 15km foi que estranhei a paisagem: não passamos o cemitério, nem o produtor de morangos, nada de chegar em Tijucas do Sul. Dia seguinte ao pileque (só pode!) é que me dei conta de que entramos em Agudos pela principal e saímos praticamente no mesmo lugar, meio quilômetro adiante, pela rua paralela, no outro trevo.
    Voltando pra casa a noite, escolhido o melhor caminho, há economia de 12 minutos vindo por lá que por cá, menos bêbados saindo dos bares, menos carros sem lanterna na outra pista. Mas na ida, sendo dia, tanto faz. O trajeto leva 2h26 minutos. Chegamos com tempo de sobra. Eu tinha tempo de sobra pra tudo, desta vez, na verdade. Trabalhei no feriado. A casa estava limpa; o almoço dos homens encaminhado; combinaram programa alternativo dada a ausência das mulheres; a roupa ventilava no varal; o carro foi abastecido. Podia ter conferido as lanternas. Não fica pra próxima. Meu mundo só não acabou num barranco de pedra porque o barranco era de terra fofa, de resto, ficamos a uma lanterna de acontecer.

    1. ATAIDE ALVES DE MENEZES JUNIOR

      Mais uma vez, um excelente texto. “Soluços do cérebro”: genial! Abraço, Rubem.

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