O que cabe e o que não cabe num Opala*

De todas as incríveis permissões tácitas de tempos antigos, uma das mais representativas era a franquia da chave do carro para menores de idade. Às vezes menores bem menores do que se possa imaginar. Amparado num misto de confiança e despreocupação, meu pai muito cedo deixou que eu dirigisse automóveis, na medida em que foi comprovada a habilidade. Antes de avançar ao próximo parágrafo, aviso leitores sensíveis de que as revelações que os aguardam são estarrecedoras.

Em 1973 trocamos o compacto fusquinha café-com-leite por um grande e chamativo Opala – sua cor de cenoura denunciava a presença de longe. Era um modelo de duas portas e banco dianteiro inteiriço, o que levava para o volante a alavanca de marchas – três para frente e uma em marcha-a-ré. Como marca distintiva, mandou pintar uma sutil lista preta acompanhando as linhas laterais do carro. E, como já fazia no Volkwagen, quando estávamos na areia entre Capão da Canoa e a Praia do Barco, no tempo em que não havia estrada, eu me sentava em seu colo para pilotar. Fazia tudo, menos pisar nos pedais.

Numa tarde de verão, quem sabe influenciado por um pouco a mais de cerveja ao meio-dia, ele liberou para que andássemos sozinhos no carro. Minha mana mais velha e eu dirigimos – ela com uns quinze anos e eu com doze. Nunca havíamos experimentado o controle total do veículo e – adivinha? – ele foi fazer a sesta. Ou seja, nenhuma supervisão externa de adultos aconteceu. Foram minhas primeiras voltas na quadra e a dificuldade, claro, era alcançar os pedais (já contei que sempre fui muito pequenino). Para atenuar o fato, naquele momento a praia também era muito pequenina. Nem postes havia, pois não chegara a eletricidade ainda.

Quando olho para trás considero a cena uma insanidade. Naquele momento não era, porque, entre meus pares, chegar aos dezoito anos com prática ao volante era bastante comum – talvez não aos doze, mas é bom lembrar que dirigir para mim não significava novidade. Aliás, pode-se dizer que tinha prática. As leis já existiam e tudo isso era, assim como ainda é, proibido e muito arriscado. A maior alteração para os dias correntes é de consciência e, talvez, percepção de punibilidade.

Este é o desafio: julgar as coisas com espírito de época. Não é fácil. Num determinado viés pode parecer a chave capaz de desculpar todas as atitudes inaceitáveis de outrora. Porém, a lógica é: tendo o exemplo do pai, fiz o mesmo com meus filhos? A negativa já demonstra que desaprovo. Agora, devo ser proibido de contar para os netos a história como aconteceu? Devo higienizar o passado? Opa: agora já começo a entrar em outro assunto. E, por maior que fosse o carro, este novo tema não cabe no Opala do pai.

*Crônica escrita durante o módulo MOSAICO SANTA SEDE a partir da mobgrafia de Cláudia Brandão.

6 comentários em “O que cabe e o que não cabe num Opala*”

  1. Renato Cirne Lima

    Lembro bem do Opala…estacionado em frente a casa da Pedro Chaves…enquanto nós aprendíamos bateria na garagem…toda ela pra desopilarmos nossas energias tocando “chá com pão”…bons tempos, boas memórias, que se foram, e que hoje quase impossíveis de acontecer como antigamente! Abraços!

    1. É, Renato! Tudo muito diferente, mesmo. E somos hoje mais velhos do que nossos velhos à época! Abração e obrigado pela recordação da Tigresa!

  2. Quando eu tinha uns 15 anos, a gurizada “falsificava” o ano de nascimento na carteira de estudante para ter 18 e poder assistir filmes (entre outras coisas permitidas a partir desta idade). Eu sabia que isso nunca iria colar para mim: estava na cara, por assim dizer. Então, este preâmbulo é só para dizer que se eu realmente tivesse 15 anos durante a aventura do Opala, teria realmente nascido em 1958 e não em 1961… Éramos todos mais jovens na mesma conta, o que arrepiaria qualquer pai e mãe hoje em dia!

    1. Carla, seus cálculos me apavoram. Quantos anos será que eu tinha? 11? 10? Menos!?
      Outros tempos, outros tempos, mesmo…
      Beijão!

  3. Luiz Fernando Bettella

    Sensacional, irretocável. Crônicas memorialistas nos pegam de jeito. Eu escreveria algo parecido, com menos talento, é verdade. Saudosismo nos faz bem senão ficarmos presos ao passado. Tenho uma sobre o Chevette, mas não vamos mudar de assunto. Parabéns. Um abraço.

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