A pacificadora

Estampa o enunciado da palestra: “Venha conhecer o que pensa a única pessoa capaz de pacificar as relações sociais neste momento”.

O estranho é não conter o nome do ou da palestrante. Nem atributos inquestionáveis elencados na biografia. Nem um número considerável de livros escritos. Nem formação sólida com passagens pelo exterior. Seria dispensável para alguém com tanta responsabilidade? Vai saber.

Abre o bloco de texto explicativo: “Se a vida não mudar depois desta noite, a culpa será sua, de mais ninguém”.

O distintivo é a aura de mistério jamais esclarecida pelos organizadores. Nada de escola filosófica ou científica do ou da palestrante. Nem perfil ao estilo rede social. Nem foto ao lado de celebridades. Como saber de quem se trata?

Segue a propaganda: “Caso você não reconheça nesta noite a pessoa capaz de pacificar as relações neste momento, terá sido a última oportunidade de distensionamento social”.

Finaliza: “Evento gratuito. Ingressos individuais. Para confirmar, precisa, antes, responder em quem jamais votaria para Presidente da República”. Ao final, há uma enquete com duas opções no formulário.

 

O público chega e cada um recebe a indicação de sua poltrona. Minutos antes da palestra o auditório já está lotado e, estranhamente, as luzes da plateia permanecem apagadas. Ao centro do palco, iluminado pela luz de um único spot, um microfone. Depois dos clássicos três sinais sonoros, uma criança de, sabe-se lá, oito anos de idade, assume o lugar reservado à estrela da noite. Traz consigo  um desenho de pombinha, retira o microfone do pedestal, dá boa noite e pede:

– Gentilmente, organização, pode fechar as portas do teatro? Valeu! Agora, técnica, acenda a luz da plateia? Perfeito! Por favor, amados, deem-se as mãos.

Como é constrangedor não atender a um pedido cândido assim, depois de certo desconforto gerado pela luz acesa, relutante, o público obedece.

– Que lindo. Olhem-se! Eis a oportunidade: vejam que à esquerda e à direita vocês estão de mãos dadas com as pessoas capazes de pacificar as relações neste momento. Como sei? No formulário, a todos os que jamais votariam no primeiro no candidato foi ofertada uma cadeira par. Os assentos ímpares foram destinados aos que vetam o segundo candidato. Aproveitem!

A seguir, a criança devolve o microfone ao pedestal e, saltitante, volta à coxia.

Isto, claro, ninguém vê.

2 comentários em “A pacificadora”

  1. “We are the world
    We are the children”

    Você canta comigo?
    Mas aí todos acharão que sabem em quem nós votamos!
    E tudo que sabem, na verdade, é que nós votamos na criança.

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