Donde há de vir e julgar II

E se, durante dias em sequência com tempo feio, chuva e frio, você lembrar da mãe que tudo fazia em sua infância para driblar as intempéries e lhe garantir roupas limpas, secas e quentes com muito menos recursos, isso tem qual valor no balanço de afetos?

E se, no meio de uma playlist aleatória, você reconhecer a música que abria aquele álbum recebido de presente num Natal antigo, um dos tantos carinhos sonoros da pessoa que tanto serviu de curadora para seu crescimento musical, qual a importância que a lembrança tem em sua vida?

E se acontecer de, numa mesma tarde, você cruzar com dois fuscas, um amarelo e um verde, e cada um deles levar no motor a força da saudade de um tempo bom, de um amigo querido, de caronas valiosas, de parceria incansável, em qual garagem estacionar essas histórias?

E se a filha dobrar risadas abrindo uma caixa de música contendo os risos de bebê dos filhos agora adultos e, agora, escutar lá no fundo da memória os sons tão límpidos, cândidos, mágicos a ponto de restabelecer a fé na humanidade inteira, ou a fé em nossa própria chance de ser um humano melhor, que outra melodia conterá tamanha força?

E se o crepitar da lareira trouxer em seu calor o arrepio da descoberta de uma pele que prometia aceitar e retribuir a delicada reciprocidade das carícias trocadas pelos amantes antes e depois da entrega, apesar das falhas e dificuldades, para além do prazer imediato, em que outro tecido encontraremos tamanho valor?

E se o dia seguinte revelar de modo cristalino – a ponto de brotar lágrimas – a existência de um numeroso acervo de tardes de sábado vividas com o aparente descaso da rotina, como se nada houvesse de extraordinário em empilhar décadas de amizade, confiança e ensaios, em qual partitura escrever a sorte deste bom destino?

Novamente, suponho que você, tanto quanto eu, tem motivos grandiosos e singelos para ofertar gratidão àqueles a sua volta, tanto aos que sempre estiveram por perto, quanto aos de passagem instantânea, surpreendente e precisa. Também creio termos feito a diferença na vida dos outros quase sem perceber – quando distraídos das grandes metas.

Isso, nada além disso, isso acima de tudo, tem o poder da absolvição: o bem, o insuspeitado e valioso bem, feito sem premeditar. Hoje e na hora da nossa morte. Amém.

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